As expressões da minha avó
Fruto de uma infância junto de uma idosa com apenas a 3. ª classe e que teve uma vida inteira de trabalho, inúmeras expressões, provérbios e citações coloquiais povoam a minha mente. Muitas advêm daquela cultura e sapiência popular que corremos o risco de gradualmente perder. Devemos, por isso, acarinhar essas expressões, mas usá-las com pinças e adequá-las aos momentos e lugares, porque usadas de forma indiscriminada podem ser contraproducentes.
A minha avó dizia que devíamos poupar o máximo possível, já que “no poupar é que está o ganho”. Um bom conselho para qualquer um, mas problemático quando generalizado. Paradoxal? É esse o nome deste problema (paradoxo da poupança): se todos pouparem, o consumo quebra e gera-se um rendimento inferior ao de partida. A poupança geral acaba por tornar-se nula ou negativa. O problema da generalização desta ou de outras expressões prende-se com confusões de escala – o facto de algo ser positivo para um indivíduo nem sempre significa que é bom para todos se todos o fizerem.
Decorrente de uma tentativa de poupança muitas vezes frustrada, a minha avó utilizava a expressão “contas certas” (ou uma variante) para mostrar que a gestão orçamental é fundamental. Sobretudo, que se não fosse possível poupar, pelo menos que não se deveria gastar mais do que o que se ganha. Uma vez mais, um bom conselho para a vida, embora nem sempre o ideal, já que o scale-up que desemboca em “o Estado não deve gastar mais do que tem”, expressão que denota um elevado grau de iliteracia económica e se revela uma ideia muito perigosa para o país. Contas saudáveis são, naturalmente, desejáveis e, em bom rigor, devem ser requisito para o desenho de políticas públicas. Só que contas saudáveis não são o mesmo que defender um excedente orçamental. Na realidade, são ideias antagónicas. Investimento público a um nível decente supera largamente défices de valores razoáveis. A lógica é relativamente simples: o investimento público em determinados sectores gera procura, receita fiscal e coloca em acção recursos ociosos. Tudo isto potencia o crescimento do país, tanto do ponto de vista material como imaterial. Desta forma, é perfeitamente possível acumular défices anuais e mesmo assim diminuir o rácio da dívida, o indicador que conta para a sustentabilidade das finanças públicas e acesso aos mercados. Na realidade, não importa muito o montante em dívida (valor nominal da dívida), mas antes a sua capacidade de pagamento (rácio da dívida em função do PIB). Portanto, contas certas a nível macro podem implicar gastar mais do que se tem.
Tendo isto em mente, faz pouco sentido (e particularmente ainda menos em alturas de crise e incerteza social como a que vivemos) excedentes orçamentais como forma de diminuir o peso da dívida. Seguindo este caminho, as contas certas deixarão brevemente de o ser, porque estamos a hipotecar o futuro do país em troca de uma descida momentânea da dívida. Não sou eu que o digo, mas sim o próprio FMI quando afirma que a consolidação orçamental (novilíngua para superávits orçamentais) não reduz rácios da dívida. Se os valores que ficam retidos fossem devidamente investidos, permitiriam uma redução muito mais significativa no futuro, para além de potenciar as capacidades do país e melhorar ou redirecionar o seu perfil de especialização económica.
É impressionante como esta ideia e expressão contaminou todo o espaço político, incluindo supostos partidos de esquerda. O chamado “fundo Medina”, lançado no seio do PS, é a institucionalização desta ortodoxia económica que nos condenará a um baixo crescimento e a uma manutenção do statu quo produtivo. Parece-me inconcebível num país em que existem falências generalizadas nos hospitais por falta de investimento em meios e capital humano, em que o parque habitacional público é uma pequena fracção do de alguns países europeus, em que vários funcionários públicos possuem a carreira congelada e existe uma grave crise de rendimentos decorrente da fraca especialização industrial, o embolsar capitais fundamentais para o desenvolvimento do país para “um dia chuvoso”. Não vejo maior insulto do que chamar “socialista” a um governo que permita que isto aconteça.
Esta obsessão com a trajetória de descida da dívida pública deve ser consequência e não causa das nossas políticas públicas. Sobretudo, não deve ser o alfa e ómega da acção política nem a deve circunscrever totalmente. Este tipo de políticas não nos salvam. Pelo contrário, trocam uma asfixia por outra que, na realidade, aparenta ser pior. Em suma, fica pior a emenda do que o soneto. Ou, de uma forma mais coloquial (e que aprecio mais), se não morrermos da doença, morremos da cura. Provavelmente, a minha avó também iria preferir esta última versão. Não porque soubesse mais de finanças públicas – aparentemente sabe mais do que a nossa direita política –, mas porque creio que nunca ouviu um soneto, emendado ou não.