Nem tanto ao mar, nem tanto à terra
Quase 2 meses após o início do período eleitoral, que se estendeu devido a trapalhadas e arranjos entre os líderes partidários, este processo teve um fim e culminou numa já garantida maioria absoluta do Partido Socialista. Começou torto, com a anulação de milhares de votos do círculo da Europa e continuou a dar passos em falso: o que nasce torto, torto fica. Os nomes dos novos ministros começaram a ser noticiados antes de António Costa entregar a lista completa ao Presidente da República, que não gostou e cancelou a reunião onde a composição do Governo seria formalmente entregue. O XXIII Governo Constitucional da nossa democracia começa com um atrito vincado entre Belém e São Bento.
Aquando do resultado das eleições de 30 de Janeiro escrevi que nos esperavam quatro anos de inércia sistémica, muito antes de saber que um impasse se iria estender até agora. Gostava de não ter razão, mas parece-me que o elenco governativo escolhido cimenta a ideia final que transmiti nesse artigo. Bem sei que se costuma dizer que os governos são como os melões: só se sabe se são bons depois de os abrir. Mas, tal como os melões, devemos fazer alguma análise prévia, para retirarmos alguma ilação. Analisemos então alguns ministérios e ministros do XXIII Governo Constitucional.
António Costa decidiu levar todos os delfins e proto-candidatos a líder do PS para o governo. Numa autêntica transposição para a realidade da velha máxima “Jobs for the boys”, António Costa rodeia-se de yes men, num governo claramente mais político do que técnico, que poderá criar dificuldades quando Portugal necessita urgentemente de reformas estruturais.
Fernando Medina, após a derrota nas autárquicas de Lisboa e polémicas com a embaixada russa, agarrou-se à bóia salva-vidas que Costa lhe atirou – o Ministério das Finanças. Costa terá em Medina um controlador do dinheiro e este não irá abrir os cordões sem anuência do Primeiro-Ministro, num ministério tradicionalmente mais técnico. Contudo, creio mesmo que, depois das autárquicas em Lisboa, o futuro político de Medina foi por água abaixo e vaticino que esta bóia não é robusta o suficiente para o salvar.
Ana Catarina Mendes, antiga líder da bancada parlamentar do PS, foi promovida para um ministério acabado de recuperar: Assuntos Parlamentares. A promoção pela defesa da bancada parlamentar durante os últimos anos era expectável, mas que sentido faz, numa legislatura cujo PS possui maioria absoluta, um ministério dos Assuntos Parlamentares se, na anterior, onde os acordos de incidência eram fulcrais, uma secretaria de Estado chegou? O objectivo, de acordo com o Primeiro-Ministro, seria criar um governo mais curto e ágil mas estas incoerências só cimentam a ideia de um início negativo.
José Luís Carneiro, ex-secretário geral adjunto do PS, ficará com a pasta da Administração Interna. Este ministério, nos últimos anos, tem sido um rolo compressor de ministros: em 2017, Constança Urbano de Sousa demitiu-se devido aos incêndios e as trapalhadas, baboseiras e imoralidades de Eduardo Cabrita culminaram na sua recente demissão. Esta pasta, aparentemente amaldiçoada, ficará assim entregue a um elemento do círculo mais próximo do Primeiro-Ministro, garantindo a total concordância de políticas e supervisão do mesmo.
Pedro Adão e Silva, comentador na RTP e na TSF, próximo do PS, após ter sido a polémica escolha para comissário das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, aceitou o lugar de Ministro da Cultura. A sua nomeação para este ministério foi uma surpresa para todos, pois não se esperava que o comentador, mais alinhado ideologicamente com o PS, viesse a aceitar o cargo. Adão e Silva irá, naturalmente, deixar o lugar de comissário das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (seria de mau tom se não o fizesse). Independentemente dessa atitude, já foi acusado de todas estas escolhas (para as comemorações e agora para ministro) serem um pagamento por “comentários mais agradáveis”.Adão e Silva deitou-se na cama que ele próprio semeou e terá agora de lidar com análises menos agradáveis, como esta.
Se o cenário até aqui reafirma a ideia de inércia sistémica, há uma pequena luz ao fundo do túnel. Refiro-me a António Costa… Silva, o novo Ministro da Economia e do Mar.
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António Costa Silva
António Costa Silva é daquelas personalidades que, pela sua inteligência, conhecimento, cultura e experiência, já deveriam influenciar a política portuguesa há anos. No meio de tantos medianos, boys ou polémicos, que muitas vezes nada acrescentam, Costa e Silva é um cérebro altamente qualificado e uma excelente aposta numa área que muito precisamos de dinamizar: a economia.
António Costa Silva possui uma visão estruturada, clara e dinamizadora para as próximas décadas em Portugal. Consegue conciliar os pontos positivos estruturais da economia portuguesa com uma cultura pós-moderna importada dos melhores países europeus. Entende, por exemplo, que não iremos sair da armadilha de baixos salários se as nossas empresas não potenciarem os seus produtos e serviços. Defendeu, por várias vezes, um aumento da percentagem do PIB na inovação e desenvolvimento e os fundos europeus que iremos receber poderão ser uma alavanca neste processo.
Até 2027, Portugal irá receber cerca de 58 mil milhões de euros, vindos do PRR, qualquer coisa como ¼ do nosso PIB. Ainda não se percebeu bem se a execução do PRR será dirigida por Costa Silva ou por Mariana Vieira da Silva (que chega agora a número dois do governo). As notícias indiciam que a responsabilidade cairá na Ministra da Presidência. Todavia, não vislumbro melhor pessoa para o alocar e supervisionar que o próprio criador do documento.
Para além da Economia, neste ministério ficará incluído o Mar e quase todas as suas vertentes. Portugal possui a 3.ª maior zona económica exclusiva da UE e será um desperdício continuarmos mais uma legislatura sem apostar fortemente no mar. As potencialidades que podemos extrair daqui são imensas, nomeadamente em energia, mais conhecimento em biodiversidade e cultura, em inovação e tecnologia. Há todo um mar para explorar. António Costa Silva possui ideias bastante estruturadas e uma visão clara de como podemos potenciar esta zona tão esquecida (a sua visão em mais detalhe pode ser encontrada no seu livro mais recente: Portugal e o mundo numa encruzilhada – Para onde vamos no século XXI?).
No meio de tantas caras iguais, António Costa Silva veio dinamizar um elenco governativo tradicional. Sempre que Portugal se virou para o mar ou se abriu ao exterior, iniciou uma época de feitos e conquistas reconhecidas mundialmente. Gerir esta vocação nacional sem esquecer as pessoas que ficam em terra é uma tarefa dificílima. Se há alguém capaz de o fazer é António Costa Silva.
O autor não segue o novo acordo ortográfico