Brincar com o fogo
Os meus primeiros textos neste blogue focaram-se no estado do PSD que se apresentava às eleições autárquicas de 2021. Procurei denunciar a descaracterização e o gradual abandono de alguns valores fundamentais que, naquele momento, via no partido. Repreendi a abordagem a essa campanha eleitoral, a escolha de certos candidatos e a incoerência entre as palavras e as ações do então presidente dos sociais-democratas, Rui Rio. Acima de tudo, apontei a uma perigosa normalização da retórica “anti-sistema” que ganhava alento em certas alas do partido, sob influência externa de saudosistas do autoritarismo salazarista, cada vez mais organizados numa nova
O ano que se seguiu não trouxe grandes mudanças estratégicas para o partido e redundou em nova humilhação nas urnas, dessa vez nas eleições legislativas. Olhando aos resultados – a conquista de uma maioria absoluta pelo PS – e à queda significativa da abstenção, não é absurdo dizermos que o desenlace dessa noite eleitoral se deveu, em parte, a uma maior mobilização do eleitorado de esquerda e à concentração desses votos no Partido Socialista (o efeito do “voto útil” fez-se sentir nos partidos mais à esquerda, que, na generalidade, tiveram piores prestações).
Esse resultado não teria sido possível sem um presente da extrema-direita ao PS: a repetida fábula de que um eventual governo de direita seria impossível sem a sua inclusão. A possibilidade de ver movimentos ultraconservadores e incontornavelmente anti-democráticos com tanta influência no poder executivo criou o “bicho papão” perfeito para António Costa. O medo causado nos eleitores de esquerda
Na sequência dessa hecatombe, Rui Rio saiu de cena e foi substituído por Luís Montenegro. O atual presidente do PSD nunca escondeu ao que vinha: em campanha para as eleições diretas do partido, privilegiou sempre a guerra com o PS à recuperação dos muitos votos perdidos para a
Aquando da eleição de Montenegro, critiquei o caminho que o líder social-democrata escolhia seguir. Pouco mais de meio ano depois, este continua esse percurso de forma tão evidentemente inabalável que sinto necessidade de vir reiterar as possíveis consequências dessa opção, na esperança de que o partido não esteja irremediavelmente perdido.
Ao invés de abordar diretamente esta preocupação do eleitorado com futuras formações de governo – que foi determinante na obtenção de maioria absoluta pelo PS –, Montenegro recusa-se a responder expressamente às questões sobre “linhas vermelhas” à extrema-direita. Porém, mesmo escolhendo sempre o discurso mais opaco à sua disposição, as intenções do presidente do PSD são gritantemente transparentes: numa altura em que o PS paga nas sondagens pelos seus erros de governação, não pode fechar a porta a uma opção plausível de futuro governo. O cheiro a poder é, afinal de contas, estranhamente hipnotizante.
Contudo, a estratégia está longe daquela que o PSD necessita nesta altura – as ditas “linhas vermelhas” poderiam ser o bote salva-vidas de um partido que não tem uma eleição da qual se possa orgulhar há mais de uma década. A garantia, expressa e passível de escrutínio futuro, de que a
No entanto, o PSD há muito deixou de ser um partido de mensagens claras e o seu presidente parece pouco interessado em mudar essa situação. Este deveria ser motivo de preocupação crescente para os sociais-democratas, já que esta se trata de uma mensagem que encoraja um “voto útil” similar àquele de que o PS usufruiu nas últimas eleições. Devido ao método D’Hondt utilizado no nosso sistema eleitoral, este efeito pode fazer a diferença – uma acumulação de votos no mesmo partido tem tendência a resultar num número maior de deputados eleitos do que a mesma votação repartida por dois ou três partidos.
Ademais, afastar a hipótese de colaborar com a extrema-direita colocaria alguma pressão sobre António Costa (algo que deveria interessar a um líder da oposição), que seria então forçado a responder a uma questão difícil: na eventualidade de uma vitória eleitoral do PSD e maioria à direita, estaria o PS disposto a pôr o ego de parte e a viabilizar um governo social-democrata, para defender a democracia e impedir a chegada ao poder de saudosistas do “tempo da outra senhora”? Suspeito que rapidamente veríamos uma inversão do tabuleiro de jogo e que passaria a ser o Primeiro-Ministro a demonstrar toda a hesitação que identificamos hoje em Montenegro.
Por fim, devemos olhar, em concreto, à hipótese que o presidente do PSD se recusa a afastar: a de um eventual governo
As implicações morais de contribuir para que a extrema-direita, anti-democrática, chegue sequer perto de poder real são evidentes a qualquer democrata pensante e já foram faladas a fundo, mas a motivação estratégica aponta também para o absurdo da rota atual do PSD: o resultado dificilmente seria do interesse até do líder do partido e alteraria irreversivelmente o panorama político em Portugal. Montenegro, vendado por um desejo messiânico de ser o responsável pela recuperação do PSD, está a brincar com o fogo. Corre o risco de incendiar o seu partido e de o deixar totalmente irreconhecível.