Brincar com o fogo


Os meus primeiros textos neste blogue focaram-se no estado do PSD que se apresentava às eleições autárquicas de 2021. Procurei denunciar a descaracterização e o gradual abandono de alguns valores fundamentais que, naquele momento, via no partido. Repreendi a abordagem a essa campanha eleitoral, a escolha de certos candidatos e a incoerência entre as palavras e as ações do então presidente dos sociais-democratas, Rui Rio. Acima de tudo, apontei a uma perigosa normalização da retórica “anti-sistema” que ganhava alento em certas alas do partido, sob influência externa de saudosistas do autoritarismo salazarista, cada vez mais organizados numa nova extrema-direita. Não foi, portanto, chocante para mim que essas eleições tenham trazido uma derrota para o PSD (ainda que menos acentuada do que a de 2017), parte daquela que tem sido uma nova norma eleitoral em Portugal, desde a saída de Passos Coelho.

O ano que se seguiu não trouxe grandes mudanças estratégicas para o partido e redundou em nova humilhação nas urnas, dessa vez nas eleições legislativas. Olhando aos resultados – a conquista de uma maioria absoluta pelo PS – e à queda significativa da abstenção, não é absurdo dizermos que o desenlace dessa noite eleitoral se deveu, em parte, a uma maior mobilização do eleitorado de esquerda e à concentração desses votos no Partido Socialista (o efeito do “voto útil” fez-se sentir nos partidos mais à esquerda, que, na generalidade, tiveram piores prestações).

Esse resultado não teria sido possível sem um presente da extrema-direita ao PS: a repetida fábula de que um eventual governo de direita seria impossível sem a sua inclusão. A possibilidade de ver movimentos ultraconservadores e incontornavelmente anti-democráticos com tanta influência no poder executivo criou o “bicho papão” perfeito para António Costa. O medo causado nos eleitores de esquerda levou-os às urnas em peso, para votar no partido que mais possibilidades lhes dava de evitar essa situação.

Na sequência dessa hecatombe, Rui Rio saiu de cena e foi substituído por Luís Montenegro. O atual presidente do PSD nunca escondeu ao que vinha: em campanha para as eleições diretas do partido, privilegiou sempre a guerra com o PS à recuperação dos muitos votos perdidos para a extrema-direita. Não mostrou, em tempo algum, pudor em vir a negociar com um partido abertamente xenófobo e de pendor autoritarista, mesmo ciente da possibilidade de, nesse processo, o credibilizar.

Aquando da eleição de Montenegro, critiquei o caminho que o líder social-democrata escolhia seguir. Pouco mais de meio ano depois, este continua esse percurso de forma tão evidentemente inabalável que sinto necessidade de vir reiterar as possíveis consequências dessa opção, na esperança de que o partido não esteja irremediavelmente perdido.

Ao invés de abordar diretamente esta preocupação do eleitorado com futuras formações de governo – que foi determinante na obtenção de maioria absoluta pelo PS –, Montenegro recusa-se a responder expressamente às questões sobre “linhas vermelhas” à extrema-direita. Porém, mesmo escolhendo sempre o discurso mais opaco à sua disposição, as intenções do presidente do PSD são gritantemente transparentes: numa altura em que o PS paga nas sondagens pelos seus erros de governação, não pode fechar a porta a uma opção plausível de futuro governo. O cheiro a poder é, afinal de contas, estranhamente hipnotizante.

Luís Montenegro

Luís Montenegro, presidente do Partido Social Democrata

Fonte: European People's Party, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons

Contudo, a estratégia está longe daquela que o PSD necessita nesta altura – as ditas “linhas vermelhas” poderiam ser o bote salva-vidas de um partido que não tem uma eleição da qual se possa orgulhar há mais de uma década. A garantia, expressa e passível de escrutínio futuro, de que a extrema-direita nunca contribuirá para um governo liderado pelo PSD passaria uma mensagem muito clara ao eleitorado: a de que um voto no ultraconservadorismo, na xenofobia e no autoritarismo não contribuiria para uma alternativa a um governo PS.

No entanto, o PSD há muito deixou de ser um partido de mensagens claras e o seu presidente parece pouco interessado em mudar essa situação. Este deveria ser motivo de preocupação crescente para os sociais-democratas, já que esta se trata de uma mensagem que encoraja um “voto útil” similar àquele de que o PS usufruiu nas últimas eleições. Devido ao método D’Hondt utilizado no nosso sistema eleitoral, este efeito pode fazer a diferença – uma acumulação de votos no mesmo partido tem tendência a resultar num número maior de deputados eleitos do que a mesma votação repartida por dois ou três partidos.

Ademais, afastar a hipótese de colaborar com a extrema-direita colocaria alguma pressão sobre António Costa (algo que deveria interessar a um líder da oposição), que seria então forçado a responder a uma questão difícil: na eventualidade de uma vitória eleitoral do PSD e maioria à direita, estaria o PS disposto a pôr o ego de parte e a viabilizar um governo social-democrata, para defender a democracia e impedir a chegada ao poder de saudosistas do “tempo da outra senhora”? Suspeito que rapidamente veríamos uma inversão do tabuleiro de jogo e que passaria a ser o Primeiro-Ministro a demonstrar toda a hesitação que identificamos hoje em Montenegro.

Por fim, devemos olhar, em concreto, à hipótese que o presidente do PSD se recusa a afastar: a de um eventual governo social-democrata sustentado pela extrema-direita, que provavelmente seria bastante instável e definitivamente violaria vários dos valores democráticos que sempre estiveram na base do partido – algo que os eleitores indubitavelmente puniriam nas urnas. Montenegro arrisca-se a alienar definitivamente os votantes mais moderados e a conceder credibilidade a movimentos radicais à sua direita, podendo sangrar eleitores em duas alas opostas do PSD e solidificando o partido como um que não voltará a governar sozinho.

As implicações morais de contribuir para que a extrema-direita, anti-democrática, chegue sequer perto de poder real são evidentes a qualquer democrata pensante e já foram faladas a fundo, mas a motivação estratégica aponta também para o absurdo da rota atual do PSD: o resultado dificilmente seria do interesse até do líder do partido e alteraria irreversivelmente o panorama político em Portugal. Montenegro, vendado por um desejo messiânico de ser o responsável pela recuperação do PSD, está a brincar com o fogo. Corre o risco de incendiar o seu partido e de o deixar totalmente irreconhecível.


Gostou deste artigo? Partilhe nas redes sociais!