Democracia com falhas, mas falhada?
Há poucos dias, foi noticiado o resultado do Democracy Index, um relatório que avalia a qualidade da democracia em diversos países. Portugal foi considerado uma “democracia com falhas”. O resultado rapidamente incendiou as redes sociais e em alguns espaços opinativos “caiu o Carmo e a Trindade”. Em suma, o resultado do relatório validava a tese de que a máquina infernal do Estado oprimia a população e asfixiava a democracia e a economia. Ao volante deste aparelho, o PS e a sua mexicanização das instituições democráticas. Ora, a acreditar nos cabeçalhos das notícias e nos soundbytes, seria caso para ficarmos alarmados. Contudo, uma análise mais pormenorizada do relatório não indica que tal esteja a acontecer.
Não entrarei em considerações teóricas da origem do poder, tipos de democracia ou qualidade das instituições. Tampouco abordarei a (in)utilidade de fazer uma inferência sobre o falhanço de uma democracia devido apenas a um relatório ou ainda a imbecilidade que é achar que vivemos sob o jugo de um burocrata autocrático. Focar-me-ei, antes, na análise concreta do relatório.
Segundo o Democracy Index, um país só pode ser considerado democracia plena caso obtenha uma pontuação igual ou superior a oito, numa escala de zero a dez. Portugal obteve uma pontuação de 7,95. Ou seja, estamos extremamente próximos do valor que nos qualificaria como democracia plena. Só por isto, as tentativas de denominar Portugal como uma autocracia mereciam escárnio. Contudo, continuemos a nossa análise, para mostrar que são ainda mais infundadas do que aparentam: uma parte considerável do relatório é feita a partir de inquéritos e entrevistas, o que influencia significativamente o resultado, devido ao óbvio carácter subjectivo do grupo estudado. Bastava que a amostra usada fosse distinta e Portugal seria considerado uma democracia plena. Ora, nesse caso, estaríamos errados ao inferir que tudo estava perfeito, assim como estamos errados ao espernear com o resultado actual. Na realidade, e para o que de facto interessa – qualidade da vida das pessoas, respeito pela separação de poderes, liberdades várias –, estaria tudo igual.
Se o resultado em absoluto não é trágico, o que dizer do mesmo em termos relativos? O posicionamento de Portugal face aos seus pares não aparenta ser negativo. No ranking global, Portugal figura na vigésima oitava posição, em 167 países avaliados. Isto é, Portugal está nos 17% de países com “melhores democracias”. Há, certamente, muito a melhorar, mas cimentamos ainda mais a ideia de que é risível pensar que vivemos em autocracia ou em qualquer tipo de regime não democrático. Se assim fosse verdade, países como a Bélgica e a Itália seriam consideradas ditaduras sanguinárias, porque figuram abaixo de nós.
O leitor pode dizer que o valor absoluto e relativo é feito com base numa média e que o resultado positivo em alguns indicadores pode mascarar a autocracia em determinados pontos. A inferência é parcialmente verdadeira, isto é, a média efectivamente dissolve disparidades, mas não evidencia qualquer tipo de tirania. O estudo opta por agrupar vários critérios em indicadores macro: a participação cívica, a liberdade de expressão, a representação, a cultura política, etc. Importa ressalvar que a economia não é um indicador de análise directo, ainda que várias questões dentro de alguns indicadores tenham um carácter económico. Nesses, Portugal figura bastante acima da média mundial ou em linha com a média Europeia. Isto serve para desmontar a lógica de que a (alegadamente fraca) qualidade da nossa democracia advém de baixa liberdade económica – nada mais errado, como veremos. Aliás, os partidos que reivindicam para si a defesa do “mercado livre” como um pilar da democracia apenas iriam piorar a sua qualidade. Ao dissociar cada vez mais a economia da sociedade, isto é, ao torná-la absolutamente “livre”, desmembram duas coisas indissociáveis. O homem não é um ser económico: é um ser social, em que uma das suas múltiplas facetas é económica. Por outras palavras, os mercados não podem ser livres porque não existem mercados fora da sociedade, isto é, não são naturais e estão incrustados nela. Desmembrar o mercado da sociedade, por forma a que fiquem "livres”, é, de forma muito resumida, dissociar a economia da política e da sociedade e preterir um rol de questões pertinentes para a qualidade da democracia (sobre este tema recomendo “A grande transformação” de Karl Polanyi).
O nosso “fraco” resultado neste relatório advém, essencialmente, por figurarmos vários furos abaixo em dois indicadores: participação cívica e cultura política. Ora, isto não é surpresa nenhuma para quem conhece, pelo menos superficialmente, o nosso país. Todos sabemos que a cultura política em Portugal é bastante diminuta. A participação cívica – que não se resume apenas no voto – é igualmente baixa. Os movimentos independentes que possuem alguma influência são poucos e parcos em recursos. Não existe, também, uma cultura de auscultação da sociedade civil nos mais diversos temas, para além da normal audiência de académicos e tecnocratas.
O resultado nestes dois indicadores, apesar de ser o esperado, é desolador. É premente mudar o paradigma da cultura e participação cívica. Contudo, não se afigura uma tarefa simples: é sabido que a maioria dos Portugueses não tem tempo disponível para dedicar-se às questões essenciais da nossa sociedade porque, entre muitas questões, figura na lista de países europeus que trabalham mais horas. Claro, a disponibilidade horária, mental e física não chega. Isto é, é condição necessária, mas não suficiente. É preciso que haja meios para promover a participação cívica, como uma realização de que o trabalho feito junto da comunidade traduz-se em valor acrescentado e reconhecido. Pode passar por uma maior consciencialização cívica, mais responsabilidade para associações, um poder local mais influente e activo. Há um longo caminho a percorrer para melhorar a prestação de Portugal nestes dois indicadores e tirar partido do melhor da nossa democracia.
Como nota final, Portugal figura acima da média da Europa Ocidental e muito acima da média mundial em dois indicadores: qualidade do sistema eleitoral e liberdades civis. O caso, portanto, não é uma tragédia. Portugal é uma democracia com falhas, como todas as democracias são, independentemente do lugar onde tenham ficado no relatório. Mas não é, de todo, uma democracia falhada.
O autor não segue o novo acordo ortográfico