Normalização do Imperialismo na Europa


Dia 24 de fevereiro de 2022 ficará para sempre marcado na história – neste dia começou a primeira guerra na Europa desde a violenta partição da Jugoslávia, segundo o veiculado pela comunicação social ocidental. No entanto, esta não é uma verdade total: houve um conjunto de conflitos de natureza armada que se desenvolveram nos últimos anos e que escaparam aos olhos dos media ocidentais. Apesar de alguns ainda estarem ativos até hoje, continuam ignorados e esquecidos.

Não obstante o mediatismo da agressividade contra a Ucrânia, a Rússia tem vindo, desde o início do século, a reprimir violentamente grupos étnicos dentro das suas fronteiras, assim como outros povos de países independentes na sua vizinhança, que considera como estando na sua zona de influência. Começando pela segunda guerra da Chechénia, passando pela invasão da Geórgia e pelo patrocínio de conflitos internos na Moldávia, Putin revelou, desde cedo, a agressividade que o caracteriza. No entanto, os europeus ocidentais apenas quiseram reconhecer este ditador imperialista quando os seus próprios interesses ficaram em risco e a Rússia bateu à porta da NATO e da UE.

Contudo, infelizmente, a Rússia não é o único país europeu agressor que tenta, cada vez mais, construir um império perdido, nem Vladimir Putin é o único megalomaníaco que tenta ser rei de um tal império. Da mesma forma que, durante décadas, fechamos os olhos ao expansionismo russo e ignoramos o fim da sua democracia, também agora estamos a normalizar o rápido renascimento do imperialismo turco e a centralização de poder à volta de Recep Erdogan: tal como a extrema-direita russa tem vindo a procurar um ressurgimento do império russo, também os extremistas turcos procuram a criação de um novo império otomano. Com esse objetivo em mente, o governo turco exerceu, e continua a exercer, particular pressão dentro das suas fronteiras, numa tentativa de homogeneização interna, já que a população que habita o leste da Turquia não é, nem historicamente nem atualmente, maioritariamente de etnia turca: pertence a outros grupos étnico-culturais.

Desde o aparecimento da Turquia moderna, estes grupos encontram-se em perpétuo conflito com o governo, culminando em práticas de genocídio. Estima-se que entre 1915 e 1917 o governo turco foi diretamente responsável pela morte de 600 000 a 1 200 000 arménios. Muitos mais, especialmente mulheres e crianças, foram forçados a abandonar o país ou a integrar-se na cultura turca, abandonando forçosamente a sua língua, os seus costumes e a sua religião. Antes deste massacre, existiam cerca de 2,5 milhões de arménios na Turquia – hoje são uma pequena minoria. Apesar desta alteração demográfica e de provas e testemunhos, o governo turco ainda nega que o genocídio arménio tenha acontecido. Também os curdos têm vindo a sofrer de idênticas tentativas de assimilação, através da proibição da sua língua e dos seus costumes. No entanto, dado o seu maior número (cerca de 14 milhões dentro do território turco), bem como o maior isolamento geográfico das cidades e vilas de maioria curda, a sua identidade persiste. Estes conflitos internos com arménios e curdos são também usados por Erdogan como justificação para prosseguir ambições imperialistas, envolvendo a Turquia diretamente em conflitos com outros países, nomeadamente a Arménia, a Síria e o Iraque.

Combatentes voluntários Azeris

Voluntários Azeris para a Guerra de Nagorno-Karabakh, na Arménia.

Fonte: ԶԻՆՈՒԺ MEDIA, CC BY 3.0, via Wikimedia Commons

A Arménia e o Azerbaijão encontravam-se há décadas num estado de guerra fria, após uma curta guerra aquando do colapso da União Soviética, devido aos estatutos da província de Nagorno-Karabakh, uma região de maioria arménia dentro do Azerbaijão. O grupo étnico-cultural dominante no Azerbaijão, os azeris, partilha muitos traços culturais e linguísticos com os turcos, sendo que o atual conflito apresenta muitas semelhanças com o anterior massacre dos arménios na Turquia. Em 2020, esta disputa deixou de ser apenas uma tensão entre países vizinhos e explodiu num novo conflito armado. O Azerbaijão derrotou decisivamente a Arménia, com um forte apoio da Turquia, e limitou fortemente as liberdades e direitos dos arménios que vivem em território azerbaijano. Apesar de ambos concordarem em parar o conflito armado, a agressividade azerbaijana e turca não tem fim à vista, com ataques armados a posições arménias, dentro das fronteiras legais da Arménia, a serem feitos pelo Azerbaijão em 2022, com explícito apoio turco.

Adicionalmente, tem havido uma crescente onda de protesto, por parte do governo e povo arménio, em relação a violações dos direitos humanos contra prisioneiros de guerra e civis arménios. Este conflito é de natureza complexa, e existem muitas nuances a considerar, já que ambos os principais beligerantes foram vítimas de imperialismo e colonização, recentemente se tornaram independentes e possuem um historial de instabilidade e corrupção, que inclui episódios de violência étnica cometida por ambos os lados. No entanto, o envolvimento da Turquia não deve ser ignorado: é a continuação de um processo de genocídio, começado no século passado, que alimenta as necessidades expansionistas de Erdogan, através da opressão a um Estado hostil nas suas fronteiras e que tem dificultado o estabelecimento de hegemonia turca na região do Cáucaso.

Analogamente ao conflito com os arménios, também a violência contra curdos tem vindo a ser exportada pela Turquia, com extensas campanhas de bombardeamento do nordeste da Síria e norte do Iraque, regiões de maioria curda. Adicionalmente, múltiplas barragens têm vindo a ser construídas ao longo dos rios Tigre e Eufrates, limitando o seu caudal e violando a Convenção das Nações Unidas sobre o direito de utilização dos cursos de água. Estes rios têm a sua origem nas montanhas da Turquia, mas sempre foram fundamentais para a sobrevivência dos povos da Síria e Iraque. Assim, estas barragens constituem projetos de terrorismo estatal, focado em prejudicar povoações curdas e coagir os governantes dos dois países, através da ameaça de privação de recursos hídricos. Mais recentemente, em resposta a um atentado terrorista em Istambul, a violência tem vindo a aumentar, podendo culminar numa segunda invasão da Síria por parte da Turquia, que já ocupa parte do norte deste país. O referido atentado não foi reivindicado por nenhuma organização independentista curda, nem existem sobreposições conhecidas entre os movimentos curdos da Turquia, Síria e Iraque. Não obstante, a Turquia definiu unilateralmente o PKK (milícia curda independentista da Turquia) como responsável pelo ataque e considerou que todos os movimentos curdos respondem a esta organização, justificando o aumento da violência.

Estes atos de violência gratuita por parte da Turquia são, em todos os aspetos, equivalentes aos métodos imperialistas da Rússia que hoje condenamos, mas que antes ignorávamos. A posição de um governante nunca é fácil e os decisores políticos europeus têm vindo a ser muito cuidadosos no que diz respeito a apoiar medidas ativas para combater imperialismo e expansionismo de países crescentemente autoritários, como a Rússia ou a Turquia. No entanto, tal como vimos com o aumento das ambições russas, esta hesitação não é uma resposta, mas sim um adiamento que apenas faz com que o problema se torne gradualmente maior. Hoje, a Turquia é vista como um aliado chave do Ocidente, que fecha os olhos às suas violações de direitos humanos, em troca de colaboração mínima em questões militares ou no controlo de ondas de refugiados. Mas deveríamos, desde já, considerar a ameaça de Erdogan à democracia e paz na Europa e Médio Oriente, que certamente só tenderá a agravar-se com o tempo. Nenhum de nós consegue parar estes conflitos sozinho, mas, como cidadãos de uma Europa livre, temos o privilégio e também o dever de estar informados. Usemos este privilégio para pressionar os nossos decisores políticos e, assim, proteger a liberdade que temos – e ajudar os demais a lutar por ela.


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