Quem quer casa, casa


Desde criança que sonhamos com a nossa independência – sair do domínio dos nossos progenitores. Não é apenas uma necessidade de emancipação, mas também demonstração de capacidade de auto-sustentação, para nós e para os outros. Essa validação é essencial para um saudável crescimento na sociedade. Contudo, este processo natural está a ser travado – nos dias que correm, é impossível qualquer jovem de classe baixa ou média conseguir ser totalmente independente, mesmo que tenha um salário acima da média. Encontram-se inúmeras razões para assim o ser. Para não me alongar, irei destacar e analisar apenas a que considero ser o principal entrave da emancipação pós-moderna: o custo da habitação.

O momento em que escrevo este artigo não podia ser melhor. Pedro Nuno Santos, ex-ministro das Infraestruturas e Habitação, demitiu-se e a sua saída instigou António Costa a cindir o ministério em dois. Para ministra da Habitação escolhe a secretária de Estado que detinha a pasta, Marina Gonçalves. À primeira vista, parece ser algo positivo: o facto da pasta ter um ministério e equipa própria demonstra que António Costa quer dar-lhe mais atenção. Resta saber se esta atenção será apenas “fogo de vista” para o público ou se resultará em propostas concretas (e úteis).

Façamos uma conta simples para entender porque considero o custo da habitação o problema mais premente: a maioria dos órgãos recomenda que a taxa de esforço da habitação (percentagem do salário alocada à habitação) não ultrapasse os 33%. Um jovem que aufira o salário médio (cerca de 1300€ brutos ou 960€ líquidos) só pode despender 320€ para habitação. Caso o leitor nunca tenha feito este exercício, incentivo-o a procurar uma habitação a este preço, num qualquer centro urbano, seja no mercado de arrendamento ou no de aquisição – rapidamente se perceberá que é impossível encontrar uma habitação a este preço.

Por isso, para conseguirem suportar as despesas de uma habitação, os jovens necessitam de “juntar trapos” e dividir casa, seja com o/a parceiro/a, seja alugando apenas um quarto. O título do artigo não foi, então, escolhido levianamente – é a adaptação de um ditado antigo ao século XXI. Antes, a procura de uma casa era uma consequência natural do casamento. Hoje, inverte-se a ordem: o “casamento” é condição sine qua non para a obtenção de uma casa.

Portugal figura como o segundo país da União Europeia onde os jovens mais tarde saem de casa, com uma média de 33 anos. Como vimos, a principal razão para esta saída tardia é o preço da habitação. Este resultado é desolador em todos os aspectos. Se, por um lado, os jovens adiam a sua independência, também protelam outros aspectos essenciais à comunidade, como a reprodução ou ainda a estabilidade social, económica e profissional. Com um mercado assim, os jovens ficam apenas com duas soluções possíveis: ou ficam em casa dos pais, não se emancipando, ou despendem uma parte absurda do seu salário em habitação, correndo o risco de cair na pobreza, o que também não é propriamente coincidente com o conceito de liberdade.

Infográfico com a idade média de saída de casa dos pais

Idade média de saída de casa dos pais na União Europeia.

Fonte: Comissão Europeia

O caso é também trágico para quem se encontra a pagar uma prestação que não pára de subir. Com o aumento das taxas Euribor (indexante à maioria dos empréstimos à habitação em Portugal), muitos ficam extremamente manietados, e outros equacionam entregar a casa ao banco.

O estado actual da habitação em Portugal é, portanto, calamitoso. Urge, por tudo isto, pensar em reformas significativas. Estas não podem ser discricionárias, isto é, não podemos aplicar todas as medidas que surgem na comunicação social apenas porque nos parecem indicadas. Muitas veiculadas são, inclusive, prejudiciais e apenas iriam piorar a situação. Vejamos, então, algumas propostas que considero encaixarem-se nesta definição e o porquê de assim ser. No fim, apresentarei algumas medidas que julgo serem úteis para o problema em mãos.

Na realidade, a maioria das propostas que apresentarei de seguida, patrocinadas essencialmente pelos rentistas e especuladores, baseiam-se praticamente numa só coisa: impostos. Alegadamente, a sua redução reduziria os preços do mercado. Já ouvimos esta ideia noutros sítios – é extremamente comum o clamor por impostos mais baixos como panaceia para a resolução de todos problemas do país. Todavia, a grande maioria dessas propostas não passa no crivo das respectivas análises. O mercado de arrendamento não é diferente. Verifica-se que no mercado informal, onde não se paga impostos, os preços são tão proibitivos como no mercado formal. Portanto, se no mercado informal não existem impostos e mesmo assim os preços são impeditivos, é risível acreditar na eficácia desta medida. Aceitar esta proposta seria dar uma benesse aos rentistas e não fazer nada (útil) pelo mercado de habitação, uma vez que o mais provável seria a manutenção do preço das rendas.

A mesma lógica é utilizada no mercado de aquisição. É extremamente comum ouvir que os jovens não conseguem comprar casa devido à asfixia dos impostos, seja nos salários, seja aquando da transacção ou manutenção do imóvel. Focando-me apenas nos impostos relativos à habitação, é particularmente inocente acreditar em tal situação, principalmente quando os impostos pagos para adquirir um imóvel não ultrapassam os 10% e a manutenção do mesmo não ultrapassa os 2% anuais. São valores significativos, é certo, principalmente quando temos em conta o salário médio em Portugal. Ainda assim, talvez seja mais eficaz actuar sobre os 90% que compõem o preço da habitação, do que nos 10% arrecadados pelo Estado. Aliás, arrisco-me a dizer que, caso o Estado se escusasse de cobrar a sua quota parte, o preço das casas ficaria igual. A EY comparou os impostos pagos neste sector com alguns congéneres europeus e a análise dos gráficos permite perceber que estamos em linha ou abaixo dos restantes países. A medida pode ser útil para o mercado, que pode manter os preços das habitações e aumentar a sua rentabilidade, mas não será, com certeza, para os jovens que pretendem adquirir uma habitação.

Infelizmente, o não-argumento dos impostos não se fica por aqui. É comum escutar-se que a quantidade e o valor dos impostos inibe os privados de investir no sector imobiliário. Mais uma vez, a tese não passa na análise dos factos: o Público noticia que os benefícios fiscais para o investimento no sector imobiliário são dos maiores do país. Para além de vistos gold, existe uma série de atenuações ou excepções aos regimes gerais, que permitem a obtenção de lucros significativos. Ora, isto indica que o Estado já modera os impostos neste sector, numa tentativa de promover o investimento privado e, por conseguinte, baixar os preços do mercado. Contudo, o resultado que obtém é o mercado que conhecemos: impeditivo para a esmagadora maioria dos portugueses. Mais: para além de não obter o resultado pretendido (baixar o preço das casas), perde receita fiscal que seria extremamente útil para resolver o problema.

As propostas descritas atrás, tendo por base a redução dos impostos, sustentam-se, sobretudo, na panaceia liberal para a resolução dos problemas – diminuição do Estado e do seu poder. Contudo, nem só os liberais são um arauto de más propostas. A verdade é que o próprio Estado falhou (e muito) neste mercado. Irei esmiuçar apenas um programa estatal, alegadamente caridoso, mas que, na realidade, é prejudicial ao mercado – o Porta 65.

O Porta 65 é um programa de apoio que auxilia os jovens a suportar a despesa da habitação. Funciona de forma bastante simples: o pagamento de uma parte da renda é feito pelo Estado, diminuindo a quota correspondente aos jovens inquilinos. Permite, assim, que estes tenham um maior desafogo orçamental. No entanto, se o programa alivia os custos aos jovens, não permite que os preços diminuam. Aliás, não só não diminui os preços como contribui para a sua manutenção ou subida, porque o rentista continua a obter toda a renda que originalmente se propôs a receber. O programa, por isso, não provoca nenhum incentivo à descida dos preços – porque haveriam os senhorios de o fazer se recebem a quantia que desejam?

O pagamento de uma percentagem da renda, por parte do governo, é apenas uma transferência de rendimentos do Estado (de todos nós) para indivíduos rentistas. Recebem um rendimento, não pela sua produção ou actuação, mas somente porque detêm uma propriedade. Ou seja, são premiados apenas porque detêm um activo (caso que é particularmente agravado no caso de heranças).

Programas deste tipo apenas acentuam a desigualdade do mercado. Transferem rendimentos colectivos para rentistas, não promovem uma diminuição dos preços nem alargam as possibilidades de compra de habitação. Ninguém duvida das boas intenções do programa, mas, em política (e em sociedade), precisamos de bem mais. Além disso, o programa parece ser inútil para a maioria: apenas foram firmados novecentos contratos desde 2019 – uns estrondosos 0,4% do total.

Todas estas soluções nada fazem para resolver este problema estrutural – são apenas um desperdício de fundos colectivos. Como disse atrás, o Estado falhou redondamente ao colocar-se de fora do mercado e não será uma mísera lei de bases da Habitação que irá fazer-nos dar o salto em frente que tanto precisamos. É pueril acreditar que basta estar outorgado na constituição o direito à habitação para que este seja aplicado. Se não se promover a garantia desse direito, de nada serve estar inscrito no contrato social. Digamo-lo claramente: o Estado precisa, urgentemente, de intervir no mercado. De forma séria, note-se, não com programas “para inglês ver”. Ou, melhor dito, para inglês comprar. Existem inúmeras propostas e soluções úteis. Creio que uma combinação judiciosa das medidas que se seguem poderia ajudar a resolver o problema.

1. Habitação Pública

Esta é, provavelmente, a solução mais óbvia, mas também uma das mais eficazes. O parque habitacional público português é composto por cerca de 2% do total de fogos – um número absolutamente ridículo se o compararmos com os congéneres europeus. Nos Países Baixos, o parque habitacional público é superior a 20%. Na Irlanda, chega perto dos 10%. Na Chéquia, idem. Os dados, mais uma vez, chocam com a argumentação promovida pelos liberais: o nosso mercado habitacional é tudo menos socialista. Na prática, é o resultado de programas e medidas ultra-liberais. Precisamos de uma oferta pública robusta e que seja uma força motriz para a diminuição dos preços da habitação.

Existe, naturalmente, oposição à medida. Ouvem-se, sobretudo, dois argumentos contra. O primeiro é que esta demoraria bastante tempo até ter resultados práticos. É verdade, mas não nos deve coibir de investir e resolver o problema no médio prazo – outras medidas, como as elencadas abaixo, podem ajudar no curto prazo. O segundo argumento contra, promovido essencialmente pelos sectores libertários, é o chamado crowding-out effect (se o Estado investir num sector, os privados vão ficar inibidos de investir no mesmo, por diminuição da rentabilidade dos investimentos). Contudo, mais uma vez, o argumento não passa no teste. Como vimos acima, o sector imobiliário é dos mais atrativos para o investimento privado. Por isso, mesmo que o Estado participe de forma preponderante neste sector, não se prevê o surgimento deste efeito, seja pela quase inexistência do Estado neste momento, seja pela rentabilidade dos projectos.

2. Taxar compra em massa de casas

Uma outra proposta, especialmente útil a curto prazo, seria uma taxação que desincentivasse a compra em massa de habitações, com especial incidência nos grandes centros urbanos. Por exemplo, o IMI poderia aumentar consoante o número de habitações adquiridas e ser particularmente agravado na compra/posse de mais do que duas habitações. Com o aumento da receita fiscal desta medida, pelo menos no curto prazo, até se poderia conceber uma redução significativa do IMI na primeira habitação.

Este agravamento fiscal pode (e deve) ter em conta as zonas de compra dos imóveis. Isto é, ter uma segunda habitação no interior do país é totalmente distinto de ter dois apartamentos num grande centro urbano. Naturalmente, o IMI reservado aos concelhos pode ter aqui um papel relevante, mas deve ser aprofundado. Esta deve ser uma nuance da medida com particular relevância, pois deve ser dada uma discriminação à compra de habitações fora das zonas de elevada pressão.

3. Utilização de espaços para habitação temporária

O Estado possui alguns edifícios que estão devolutos ou com pouca utilização. As que se situam nas zonas de elevada densidade podem e devem ser realocadas para alojamento público. Esta medida teve especial atenção quando o LIVRE apresentou uma proposta neste sentido. O partido liderado por Rui Tavares propunha a utilização de quartéis militares como residências estudantis. É uma medida que poderia ser já aplicada no próximo ano lectivo e que reduziria significativamente a pressão no mercado, principalmente nas duas maiores áreas metropolitanas do país.

4. Impedir a compra de habitação por quem não necessita

O Canadá teve os holofotes do mercado habitacional, na primeira semana deste mês, quando ratificou uma medida que impedia investidores estrangeiros de comprar uma habitação nas zonas de maior carência. Longe de ser inovadora (a Nova Zelândia já tinha aplicado uma medida semelhante em 2018), a medida parece ser extremamente útil para conter a subida dos preços por via de investidores estrangeiros ou “nómadas digitais”. Aparenta, também, ser um marco no controlo da especulação imobiliária nos grandes centros urbanos. A proposta contempla, naturalmente, várias excepções, como trabalhadores estrangeiros residentes no país de forma permanente – caso contrário, tratar-se-ia de nativismo bacoco.

Uma medida similar em Portugal poderia ser útil, principalmente quando são veiculadas notícias de habitação exclusiva para nómadas digitais, com condições aparentemente excelentes, a um preço similar ao que existe no mercado (só de si é chocante um quarto custar 500€ por mês – ainda se recorda que o trabalhador médio só poderia despender de 320€ por mês?).

As medidas apresentadas procuram, por um lado, dinamizar a oferta habitacional e, por outro, guiar a procura, isto é, impedir a compra desmedida e por parte de quem não precisa. Naturalmente, as políticas de habitação não se esgotam neste pequeno artigo: propostas como a maior penalização de alojamentos locais em zonas cruciais, o completo término dos vistos gold ou a desburocratização de licenciamentos são também pertinentes. Longe de ser uma completa análise do mercado, espero que a desconstrução de várias propostas nos auxilie a guiar o debate na direcção correcta. Por um lado, que sirva para fazer ruir várias medidas baseadas em argumentos falsos. Por outro, que sirva para edificar novas casas. Acima de tudo, que transmita um sentimento de esperança para quem, como eu, para ter uma casa, terá de casar.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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