Europa, para quê e para quem?
Num momento como o que estamos a viver, a União Europeia ganha uma nova importância que, com a crise de 2008, tinha sido esquecida por muitos europeus. A descrença no projeto europeu durante a crise financeira foi promovida por aqueles que se diziam, naquele tempo, europeístas: liberais que se esqueceram dos princípios de Voltaire e Smith, adotando para si os dogmas da Escola de Chicago, uma nova forma agressiva e selvagem de ser liberal, o neoliberalismo; sociais-democratas que se converteram à tão aclamada terceira via de Tony Blair, esquecendo a sua base social, as pontes com os sindicatos e com as forças progressistas da sociedade. Tudo se combinava para o princípio do fim de uma União que, com os seus aspetos positivos e negativos, mantém a Europa unida.
A aplicação da política da troika e da austeridade quase acabaram com a UE e com os seus povos, impondo uma relação insustentável entre capital e trabalho, que causou, mais tarde ou mais cedo, o colapso do Estado Social e, consequentemente, a falência dos valores democráticos. Vejamos o exemplo ibérico.
Em Portugal e em Espanha, dois países intervencionados pela troika, o trajeto foi muito parecido. Ambos tinham governos socialistas com uma política orçamental expansionista, de corte progressista no que diz respeito a direitos e liberdades individuais como o matrimónio homossexual, o aborto e, no caso espanhol, a primeira lei de memória histórica no país e uma política de reforço da despesa pública no que concerne à construção de infraestruturas e a apoios sociais. Contudo, com a aceitação das políticas da troika, em 2011, os governos socialistas esvaziaram-se de apoio popular e, nessas mesmas eleições, projetos conservadores de centro-direita e direita ganharam as eleições. Em Portugal, o PSD de Pedro Passos Coelho ganhou as eleições sem maioria absoluta e governou em coligação com o CDS-PP de Paulo Portas. Em Espanha, o Partido Popular de Mariano Rajoy ganha com uma maioria absoluta confortável.
Os governos de Passos e Rajoy aplicaram o programa imposto por uma Comissão Europeia mergulhada no neoliberalismo, cometendo ataques aos salários e às pensões, aos direitos dos trabalhadores e ao próprio Estado Social e de bem-estar. O exemplo máximo de dita política, comum aos dois países, foi a aprovação de um novo código do trabalho, em 2012, que, em ambos casos, esvaziava o poder negocial dos trabalhadores, acabava com a contratação coletiva, introduzia o banco de horas (para evitar o pagamento das mesmas), congelava as progressões salariais, liberalizava o mercado laboral através de uma temporalidade atroz e abaratava o despedimento, entre outros ataques.
Com este cenário surge a pergunta: Europa, para quê e para quem?
A pandemia da COVID-19 e as crises económica e social que se lhe seguiram recolocaram esta questão no centro do debate político, pois a resposta à crise daria um novo sentido ao projeto europeu. Alguém imagina os efeitos de ter aplicado a receita resultante da austeridade de 2008 em plena crise pandémica, em 2020? A resposta ao título deste artigo
Chegados a este momento e em plena crise energética e económica, consequente da invasão russa à Ucrânia, o projeto europeu sofre outro desafio: volta a ter nas suas fileiras – no Banco Central Europeu – quem queira ignorar o óbvio e prosseguir uma política de aumento de juros, que, na sua ótica, fará com que a inflação diminua para níveis “aceitáveis”. Esta opção política de Christine Lagarde, chefe do BCE, é facilmente desmentida: veja-se, por exemplo, Espanha.
O governo de coligação entre o Partido Socialista (PSOE) e Unidas Podemos (UP) conseguiu baixar o valor de inflação que rondava os 10-12% para 6,6% no último mês com uma política de devolução de rendimentos que reforça as políticas do escudo social, a derrogação do código de trabalho de 2012, o aumento do salário mínimo para 1082€ e um imposto sobre os lucros excessivos. Com isto, vemos que não é com receitas do passado que se constrói o futuro.
Transição climática, reforço e efetividade do pilar social europeu, política energética comum, reforço da democracia e da representatividade no seio das instituições europeias e normas comuns para o mercado do trabalho – são estes os desafios que a Europa terá de enfrentar. É sabido que há governos europeus que bloqueiam algumas transformações, que distorcem boas medidas, para que estas não tenham implementação possível, mas também sabemos que há todo um setor progressista e social ávido por mudança e que acredita que uma nova Europa é possível. Dou-vos um exemplo: Yolanda Díaz, ministra do Trabalho e Economia Social em Espanha, implementou a lei Rider, que reconhece o direito de ter um contrato de trabalho aos trabalhadores de plataformas como a Uber. Mais tarde, levou a proposta aos Ministros do Trabalho europeus e, hoje, está em debate a criação de uma diretiva europeia que vai nesse mesmo sentido. Se há governos (como o húngaro e o português) que tentam bloquear esta diretiva ou modificá-la com a figura do “intermediário”, esvaziando-a de qualquer valor, também há quem se una em prol da dita diretiva, como os Verdes, a Esquerda Europeia, e a maioria da bancada Socialista: forças progressistas que se unem nos momentos certos pelas medidas certas.
Europa para quê e para quem? Para fortalecer os laços entre os povos e fomentar a igualdade no território; para quem a constrói e construiu com o seu trabalho. Se esta não for a resposta, então não haverá Europa.