Cortinados num prédio em ruínas


Começo este artigo por pedir desculpas aos leitores por uma frase errada que escrevi a 31 de Outubro de 2021, no seguimento do chumbo do Orçamento de Estado para 2022: “um governo minoritário é sempre mais instável que um governo maioritário". Na altura, parecia uma mera lapalissada, mas António Costa conseguiu o improvável: tornar um governo de maioria absoluta um dos mais frágeis de que tenho memória.

Galamba encontra-se na manhã de terça-feira com António Costa, no seguimento de incontáveis escândalos no dossier TAP. Ao fim da tarde, o Primeiro-Ministro reúne-se com o Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, no que aparenta ser o prenúncio da morte do Ministro. No fim dessa reunião, Galamba pede a demissão – até aqui, nada de inovador. Só que, numa conferência de imprensa no pátio de S. Bento, a aproveitar o bom tempo que fazia ao início da noite, António Costa decidiu abanar o cenário político: rejeitou a demissão de Galamba por não lhe ser possível “imputar pessoalmente qualquer falha". Se o caso já estava tremido, o Presidente cimentou a hecatombe: enquanto o Primeiro-Ministro falava, Marcelo publicava uma nota da presidência em que discordava publicamente desta decisão. Tudo isto em escassas 10 horas. O resumo dos factos é digno de um sketch dos Gato Fedorento, onde reina o absurdo.

Não estamos perante amadorismo político. As principais figuras estão no meio há várias décadas e são conhecidas pelo seu calculismo táctico, mesmo no mais heterodoxo dos passos. O braço de ferro entre chefe de Governo e chefe de Estado perdura há várias semanas, numa série de confrontos verbais e ameaças, até agora veladas, de dissolução. Desde terça-feira, o caso mudou de figura.

Tax Wedge

António Costa

Fonte: Agência Lusa, via WikiCommons

Encostado à parede, o Presidente pode anuir e deixar passar o caso, numa atitude de manifesto rebaixamento da Presidência ao Governo e a António Costa, ou então dissolver a Assembleia, não se afigurando uma alternativa sustentada de governação composta somente por forças democráticas. Qualquer uma é má, mas, pior do que isso, é o clima quente de pântano que o caso cimentou, onde só os extremismos bacocos se deleitam a rebolar. Digamo-lo claramente: este jogo patético só alimenta o descontentamento dos portugueses, cujas condições de vida estão manifestamente degradadas, e insufla os populistas.

Precisamos que a governação seja estável, sólida, equilibrada e que reforme o país. Que valorize a nossa economia. Que diminua as desigualdades. Que cumpra um mandato social europeu. Que não instrumentalize instituições a seu bel-prazer. Que não se circunscreva a uma elite que subsiste da política. Que ausculte a sociedade civil. Em suma, que seja o contrário de tudo o que tem sido até agora.

A demissão de Galamba não seria acto suficiente para tal. O Governo, pela sua própria incompetência, perdeu claramente a sua base de apoio, o que se verifica quer pela contestação popular, quer pelas sondagens, que apontam uma perda de perto de 20 pontos percentuais. Não tem conseguido resolver os problemas da população, nem parece ter genuína vontade de o fazer. Uma remodelação, a menos que seja tão profunda que mude por completo a governance do executivo, onde a cabeça do líder não pode ficar incólume, não resolverá nenhum dos problemas dos portugueses – será uma mera mudança de cortinados num edifício em vias de ruir.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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