A madrugada esperada
Assinalam-se hoje os 49 anos da Revolução dos Cravos. Em jeito de celebração de um acontecimento tão determinante no nosso país e na nossa sociedade atual, decidimos escrever um texto especial, que assinamos em conjunto.
Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
As Portas que Abril Abriu, de José Carlos Ary dos Santos
A 25 de Abril de 1974 ocorreu uma revolução que derrubou um regime ditatorial que, entre ditadura militar e Estado Novo, vigorava em Portugal desde 1926. Foram 48 anos de trevas, repressão e censura. O discurso político e a imprensa eram totalmente controlados por aqueles no poder, os semblantes de processos eleitorais existentes resultavam em atentados à vontade popular e opositores ao regime eram perseguidos, exilados, encarcerados ou até assassinados.
Além da evidente deturpação dos mais primordiais valores republicanos, é essencial destacar o quanto a generalidade das pessoas tinha de lidar com uma vida de miséria. Uma fatia imensa da população nunca tinha visto um hospital ou um centro de saúde. Um quarto dos portugueses não sabia ler nem escrever e a vasta maioria possuía apenas o ensino primário (completo ou incompleto). Muitos não possuíam água canalizada, electricidade ou casas de banho no interior dos seus lares. Viviam em condições abjetas e de insalubridade, arcaicas quando comparadas às dos restantes países europeus.
Ademais, as preocupações dos portugueses não se resumiam aos fatores que ditavam a qualidade de vida por cá: a guerra nas então colónias – que reivindicavam o respeito pela sua autodeterminação, perante os abusos criminosos do regime – era um tormento que pairava sobre as vidas da maioria dos portugueses, que ceifou vidas e destruiu famílias. Tudo em busca de um objetivo que, pelo mundo fora, já se tinha percebido ser bárbaro: uma exasperante luta para tentar segurar algum idealizado império que, na realidade, já há muito estava moribundo. Quantos pais, filhos, tios e avós pereceram ao lutar contra aqueles que, na verdade, eram seus irmãos? Quantos deixaram para trás filhos e mulheres, condenados a uma vida de miséria? Quantos voltaram, aterrorizados da experiência de guerra, e ficaram com traumas – físicos ou psicológicos – para o resto da vida?
Encandeados pela ambição, os poderosos não viam, porém, que a guerra que mantinham a tanto custo seria o catalisador para o fim do tenebroso regime que os sustentava. Sentindo-se descartados por aqueles que os enviavam para morrer a milhares de quilómetros de casa, a dissidência dos militares portugueses cresceu. As chefias menos afetas ao regime começaram a idealizar um futuro diferente, sob um regime mais justo, e organizaram-se no Movimento das Forças Armadas (MFA), com o objetivo de planear uma sublevação que, finalmente, viesse a romper com quase 50 anos de podridão institucional.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Trova do vento que passa, de Manuel Alegre
O plano viria a concretizar-se na madrugada de uma quinta-feira, 25 de Abril de 1974. Entre ações de outras forças em várias zonas do país, militares da Escola Prática de Cavalaria, encabeçados pelo Capitão Salgueiro Maia, tomaram o Terreiro do Paço. De seguida, cercaram o Quartel do Carmo, onde António de Spínola acabou por aceitar a rendição do então Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano. A ditadura que tinha assolado este país durante quase meio século havia caído e, repentinamente, estavam abertas as portas para que se instalasse, finalmente, a democracia tão desejada.
Ainda assim, seria ingénuo (e errado) dizer que a nossa liberdade se conquistou ali, entre cravos, num só dia. As bases do nosso atual sistema e da nossa sociedade construíram-se durante os meses seguintes e o 25 de Abril marcou apenas o início do nosso percurso comum em democracia – percurso esse atribulado durante os anos subsequentes à sublevação militar e popular. Entre vários momentos decisivos, divisivos e marcantes, o caminho revolucionário português findou e o processo democrático deixou de estar em curso para se tornar algo estrutural, incrustado no seio de todos os filhos e netos de Abril.
Porém, devemos celebrar hoje esta data em que nos libertamos das amarras da opressão, de um regime instalado, muito enraizado e totalmente desenhado para suprimir qualquer opinião divergente. É esta a ocasião que nos une na comemoração da nossa liberdade e igualdade e que nos recorda de um objetivo comum, pelo qual temos de continuar a lutar diariamente: não voltaremos a ver os nossos direitos negados, não deixaremos que este país volte a cair no profundo poço da tirania.

Fonte: Henrique Matos, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons
Se optamos por dedicar os primeiros parágrafos deste texto a descrever as condições atrozes em que vivia o comum dos portugueses durante o Estado Novo, foi por acharmos importante recordar as consequências do autoritarismo. São, afinal, fáceis de esquecer, quando temos hoje mais comodidades e essas mesmas preocupações já não nos pesam no dia-a-dia. Lembremos: estamos melhor hoje porque o 25 de Abril rompeu com este passado do qual nos envergonhamos e cuja memória não podemos deixar dissipar. As nossas vidas como as conhecemos, as possibilidades em aberto no futuro, o otimismo – tudo isso são as tão afamadas “conquistas de Abril” e devem ser enaltecidas.
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.
25 de Abril, de Sophia de Mello Breyner Andresen
As condições de partida de Portugal num mundo pós-moderno eram manifestamente más. Contudo, aos poucos, conseguimos trilhar um percurso europeu invejável. Em particular, desde a entrada de Portugal na CEE (agora UE), é inegável a melhoria das condições de vida, sejam elas materiais, sociais, intelectuais ou culturais. A presença de Portugal em inúmeros projetos europeus permitiu ancorar o ideal democrático e evitou a sua rutura e possível recuo.
Em praticamente todos os indicadores relevantes para a conceção de uma sociedade desenvolvida, Portugal melhorou substancialmente desde o 25 de Abril, muitos desses aprofundados desde o início do percurso europeu: a taxa de mortalidade infantil é, neste momento, das melhores do mundo; o número de cidadãos que sofre de privação material é bastante reduzido; as qualificações médias estão praticamente ao nível europeu.
No entanto, de todas as conquistas de Abril que se podem enumerar, nos mais diversos campos, passando pela Liberdade, Saúde, Educação e Segurança Social, gostaríamos de destacar uma que é, por vezes, preterida nas referências, em detrimento das enumeradas atrás: a Igualdade. Sem igualdade nenhuma das outras coisas seria possível. Naturalmente estão todas interligadas por múltiplos aspectos, mas é a conceção natural de que todas as pessoas são iguais que edifica todo o nosso sistema social. Tal naturalidade do termo só adveio com o 25 de Abril – até então, os portugueses não eram, de todo, iguais.

Só há liberdade a sério quando houver
A paz
O pão
Habitação
Saúde
Educação.
Liberdade, de Sérgio Godinho
É, contudo, também essencial recordar que a democracia, como tudo na vida, não está garantida e morrerá sem um esforço comum e constante, em particular, da sociedade civil — isto é, de todos nós. Os números que dão conta da pouca participação política portuguesa são verdadeiramente preocupantes neste aspecto. Por um lado, porque são combustível para vários projetos iliberais, que se aproveitam de um descontentamento generalizado. Por outro, porque provocam um ciclo de distanciamento face a uma elite política, que se quer próxima da população que lhe dá sustentação no contrato social: a falta de esforço, transversal a pessoas e instituições, coloca em causa tudo o que já foi construído e leva a um maior distanciamento que, por sua vez, coloca novamente tudo em causa. Este ciclo vicioso, ao contrário do que o próprio nome poderia indicar, não se irá perpetuar. Se continuarmos por muito tempo neste estado, o crescimento exponencial de movimentos extremistas culminará na rutura do nosso modelo atual de sociedade.
Numa altura em que, cada vez mais, ressurgem os inimigos aos ideais de Abril – sejam estes declarados ou não –, urge relembrar esta data e o seu significado e defender as suas conquistas de todos aqueles que pretendem voltar a instalar um estado de opressão e repressão. Torna-se, inclusive, premente combater tais projetos. Existem inúmeros regimes espalhados pelo mundo que, não se sabendo cuidar, deixaram de ostentar o termo “liberal”, ainda que tentem segurar pretensões de serem "democracias". Cabe à sociedade intervir e mostrar que tem algo a dizer quanto ao caminho a percorrer. Cabe também aos intervenientes políticos a gestão da vontade popular maioritária e a melhor alocação possível dos recursos. Proteger os triunfos das gerações passadas para que os deixemos às futuras – esta é uma luta de todos nós e temos de a travar diariamente.