Do lado da democracia
A tradicional dicotomia esquerda/direita é útil e necessária em política. Permite-nos, por exemplo, qualificar rapidamente movimentos políticos fundamentalmente diferentes. No entanto, numa democracia saudável, há momentos que devem transcender esta dicotomia, por colocarem em questão valores que devem ser comuns a todos os democratas: a defesa da liberdade, igualdade e fraternidade, dos direitos humanos ou da autodeterminação dos povos. Uma invasão de uma oligarquia autocrática a um país democrático, por decisão delirante de um déspota desesperado, é um desses momentos. Infelizmente, parece que a mensagem não chegou a todos os ditos “democratas” e, pelo mundo fora, de parte a parte, temos visto tiradas mirabolantes de grupos que parecem estar à parte da realidade ou, no mínimo, pouco interessados em defender os valores democráticos.
Comecemos por uma breve análise de alguns desses grupos (que, lamentavelmente, mantêm notoriedade), para lá do Atlântico: os movimentos ultraconservadores e nacionalistas norte-americanos que ganharam fulgor após a eleição de Donald Trump.
Recorde-se que este ex-presidente dos EUA passou quatro anos como alegado “líder do mundo livre”. Contudo, ao invés de condenar a invasão de uma nação independente pelo país que mais rivalizou os EUA na História recente, a primeira reação de Trump passou pelo elogio das ações de Putin, que caracterizou como “geniais” (ainda que, entretanto, já tenha vindo criticar a Rússia, parte da habitual dissonância cognitiva a que nos habituou). Nada que deva ser surpreendente, já que Putin contribuiu para a eleição de Trump e que o norte-americano foi alvo de um processo de destituição por chantagear o atual presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy.
A posição de Trump é revoltante. Todavia, num ato de tribalismo, parte da sua normal quadrilha partilhou a mesma linha de pensamento e passou a proferir publicamente barbaridades sobre a invasão, com pouco zelo pelas consequências. O propagandista da Fox News, Tucker Carlson, por exemplo, defendeu Putin de forma acérrima, tendo excertos do seu programa sido até utilizados na televisão pública russa.
Já na realidade nacional, que provavelmente será de maior interesse para o leitor, tivemos oportunidade de testemunhar uma argumentação diferente, mas com uma conclusão semelhante: aquele que levou o Partido Comunista Português a ilibar Vladimir Putin – feito bússola moral do combate à reação – e a virar o foco para o imperialismo americano e para a NATO. O Hélder Fontes já criticou a atitude do PCP na sua reação à invasão neste blogue. Ainda assim, creio que a decisão do partido é condenável o suficiente para merecer mais atenção e maior escrutínio.
A oposição à NATO sempre fez parte da identidade do PCP, avesso ao “imperialismo americano” e historicamente alinhado com a influência soviética. Não obstante, é importante lembrar que é possível criticar os EUA e, ainda assim, considerar pior o imperialismo russo, dado que os atos de um promovem (ou tentam promover) a difusão dos valores democráticos e os atos do segundo têm vindo a tentar abalar esses mesmos valores. Não só é possível como recomendável, especialmente num momento em que uma destas formas de imperialismo se faz pela invasão não provocada de um país vizinho, soberano, e ameaça aproximar o mundo de uma guerra nuclear.
A posição do PCP poderia fazer sentido aos seus militantes num contexto de Guerra Fria, em que duas visões socioeconómicas profundamente distintas se opunham, mas esse mundo ficou no século passado: como o próprio Partido Comunista admite em comunicado, “a Rússia é um país capitalista, cujo posicionamento é determinado, no essencial, pelos interesses das suas elites e detentores dos seus grupos económicos, com uma concepção de classe oposta à do PCP”. No século XXI, é impossível a um partido comunista justificar através da ideologia a defesa da Rússia, uma oligarquia ligada ao aparecimento e financiamento de movimentos populistas de extrema-direita pelo mundo, como os de Marine Le Pen, em França, de Matteo Salvini, em Itália, ou, como mencionei acima, de Donald Trump, nos Estados Unidos.
Mesmo não podendo utilizar a desculpa do combate ideológico, o PCP escolheu derivar toda a sua posição do sentimento anti-NATO e nunca da razão. Condenar as ações da Rússia nos últimos dias não tem de passar pela aceitação de ações condenáveis dos EUA noutras alturas da História, mas, dada a crise premente que o mundo tem em mãos, não será este o momento ideal para as destacar. É, isso sim, o momento de montar uma contestação firme ao país que atualmente viola a soberania ucraniana – inscrita no Acordo de Belaveja e no Protocolo de Alma-Ata e reafirmada no Protocolo de Minsk e no Memorando de Budapeste. É o momento, não de estar do lado dos EUA ou da Rússia, mas do lado da democracia. Porém, quando pressionado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, para, pelo menos, condenar em algum aspeto a Rússia nos 13 segundos que lhe restavam para falar, o ainda líder da bancada parlamentar do PCP, João Oliveira, foi incapaz de sequer fazer isso.
Os últimos anos trouxeram ao palco político um clima de polarização crescente, em que a barreira entre a esquerda e a direita se acentuou. No momento atual, haverá certamente quem tente manter esse clima, por lhe interessar pessoalmente. Cá em Portugal, há, à esquerda, quem diga que, para se ser de esquerda, é preciso criticar indiscriminadamente a NATO e apoiar todos os seus inimigos. Há também, à direita, quem diga que toda a esquerda pensa dessa forma e que para defender a Ucrânia, é preciso ser-se de direita, quando isso não é verdade: muitas personalidades e movimentos de esquerda têm sido inabaláveis na condenação do regime de Putin. Já lá fora, há países onde esses “lados da barreira” estão absolutamente invertidos acerca desta situação, porque a retórica se fez de forma diferente. Essa incongruência deve-se ao facto de este não ser um tema de “esquerda vs. direita”.
Nem os partidos políticos nem estes dois lados do espectro político são tribos ou clubes de futebol e é importante lembrar que é possível discordar em vários aspetos do movimento que decidimos apoiar. Chegou o momento de os apoiantes do PCP decidirem se este é o Partido Comunista que querem em Portugal. Talvez tenha chegado o momento de trazer o PCP para o século XXI, de forçar uma mudança estrutural – nomeadamente, ao nível de um comité central cuja eleição é pouco democrática e que tem imposto ao partido posições muito difíceis de justificar, no que à política internacional diz respeito.
Em democracia, há, hoje, valores que se impõem e urge defendê-los, independentemente do posicionamento político. Ao fim de 48 anos de democracia em Portugal, já se sente a hora de o PCP aprender esta lição.