Rousseau nunca foi traduzido para russo
Praticamente todas as guerras do nosso mundo ocorreram pelo domínio de um território, pela subjugação de um povo ou pela usurpação de recursos. Jean-Jacques Rousseau, brilhante contratualista francês do século XVIII, no seu “Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens”, ao mostrar que a propriedade era uma construção social, escreveu: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, se atreveu a dizer ‘Isto é meu’, encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele (...). Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao ser humano aquele que (...) houvesse gritado ‘Evitai ouvir esse impostor!’.” Quem inventou a propriedade como a conhecemos foi, provavelmente, o maior tolo da história da humanidade.
Após a mobilização de mais de uma centena de milhar de tropas para zonas fronteiriças à Ucrânia, Putin desestabilizou uma zona já de si bastante instável, ao declarar a independência de duas zonas separatistas, Donetsk e Lugansk. O mais irónico do seu discurso na passada segunda-feira foi a garantia do destacamento de “forças de manutenção da paz” para a zona em conflito. Até quinta-feira, para Putin, “destacamento de forças de manutenção da paz” significava dar apoio e armamento aos separatistas pró-russos, para que se rebelassem (ainda mais) contra Kiev. Tudo mudou nessa madrugada. Ficamos a saber que tipo de paz, em concreto, pretende Putin: controlo da Ucrânia e retoma de uma Rússia Imperial. Os bombardeamentos e ataques a infra-estruturas ucranianas, dentro e fora das zonas separatistas, foram o começo de uma guerra que está para durar. O cerco a Kiev começou na madrugada de sexta-feira e não augura nada de bom.
Os receios de Putin, de não controlar a zona geográfica envolvente à Rússia, não são infundados. A URSS, outrora potência global, estilhaçou-se nos anos 90 – o Império Russo tinha, por fim, colapsado – e deixava a Rússia só, com alguns países pouco relevantes no panorama internacional, presos à concepção mental de um império morto, como a Bielorrússia ou o Cazaquistão. Putin viu vários outros países, antes sob a sua influência, aproximarem-se do modelo de sociedade ocidental e tornarem-se democracias liberais. Viu, também, a NATO aproximar-se das suas fronteiras. Este enfraquecimento significativo da posição russa não caiu bem no ego de toda uma classe que dominou “metade do mundo” até há 30 anos. Putin tem receio que a Rússia sofra o mesmo fim, com a sublevação da sua população e o término da oligarquia e plutocracia que vigora. Ainda que tal situação não se avizinhe no futuro próximo, esta manobra de ocupação e ingerência só demonstra que Putin receia que lhe aconteça o mesmo que a Ceaușescu (morto por um pelotão de fuzilamento em praça pública), caso não tenha mão de ferro e retome o Império Russo ou caso não tenha a classe oligárquica contente.
Nesta guerra sem sentido, não podemos nunca esquecer quem mais sofre: inocentes e pessoas que apenas querem paz na sua zona. Não quero crer que uma terceira guerra mundial esteja iminente apenas pelos anseios de um proto-ditador em manter o seu poder. Seria o maior acto de tolice de toda a humanidade desde o homem que inventou a propriedade.
Apesar de nos últimos anos ter feito uma aproximação considerável para ingressar na NATO, a Ucrânia não faz parte desta organização militar. Assim, ao abrigo do artigo 5º, a NATO não possui legitimidade para a defender. Todos os apoios dos países ocidentais consistem em material militar e de apoio humanitário, que são uma contribuição importantíssima, mas que pode não ser suficiente para defender a Ucrânia de um dos maiores arsenais militares do mundo.
A Rússia, neste momento, nega a autodeterminação da Ucrânia, ao recusar-lhe, de facto, a adesão à NATO. Se a Ucrânia quer ou não fazer parte da NATO é uma decisão que cabe apenas e só à sua população determinar. No entanto, Putin possui uma concepção bastante diferente – afirmou até que a Ucrânia só será soberana em parceria com a Rússia. Este não é mais que um truque de retórica bastante impreciso e manifestamente perigoso. Sabemos bem que tipo de soberania Putin quer para a Ucrânia: subserviência a Moscovo. Todavia, não existe nenhuma relação de parceria em que um é subserviente a outro. Tal é descrito por Rousseau, quando coloca o problema da escravatura no seu magnum opus “O contrato Social”: “Quer de um homem para outro homem, quer de um homem para um povo, esta argumentação será sempre insensata: ‘Estabeleço contigo um acordo, inteiramente em meu benefício e totalmente em teu prejuízo, que manterei enquanto quiser e que tu terás de aceitar enquanto eu assim o entender’.”
A União Europeia (UE), ainda antes da guerra ser oficial, tomou medidas e aplicou sanções à Rússia, nomeadamente limitações de importações e exportações para a Rússia. Estas sanções foram, e bem, concertadas com outros países do mundo ocidental, como Inglaterra e EUA. No entanto, não sei quem perde mais com isto: se a Rússia, se a UE. A Rússia é dependente de produtos alimentares e equipamentos europeus, mas a UE é, em grande medida, muito dependente do gás natural russo. É uma faca de dois gumes, onde ninguém ganha e, talvez, a UE perca mais.
Provavelmente, as sanções que mais afectam Putin são as que, aparentemente, são mais inócuas: as que prejudicam e restringem as operações (pessoais e financeiras) dos oligarcas russos. A exclusão de grande parte dos bancos russos do SWIFT (sistema internacional de transferências e transacções) é uma machadada significativa na economia russa. A Rússia, como oligarquia/plutocracia criada após a implosão da URSS, terá o seu poder interno colocado em causa se perder o apoio desta classe, e a cabeça de Putin será a primeira a rolar. Estas sanções devem ser mais aprofundadas, para que seja possível mudar o rumo desta guerra. Caso contrário, estaremos apenas a aplicar um cosmético sobre um mal maior: o renascer do Império Russo.
Todos os impérios da história foram marcados por sangue, agressão, ingerência, vassalagem e escravatura. O PCP aparentemente discorda, ao ser o único partido português a não condenar veementemente o regime russo. O que sobra do antigo Império Soviético, que é “pouco” mais que a Rússia, ainda alimenta muitas mentes na Soeiro Pereira Gomes (sede nacional do PCP).
Há uns meses escrevi neste mesmo blog um artigo a criticar a posição do PCP quanto à Bielorrússia. O PCP aparentemente nada aprendeu, dado que agora escreve coisas como: “As provocações dos EUA e seus aliados na NATO e a gigantesca manobra de desinformação em torno da «iminente invasão russa da Ucrânia» são elucidativas dos métodos utilizados pelo imperialismo para tentar prosseguir o velho sonho imperialista (...)” ou ainda: “A obscena campanha provocatória do imperialismo contra a Federação Russa intensificou-se continuamente nas últimas semanas (...)” Estas citações, que parecem saídas de um qualquer livro distópico de George Orwell ou de Aldous Huxley, estão publicadas no jornal Avante!
O PCP, que tanto se define como marxista-leninista não deve ter lido “Imperialismo, Estádio supremo do capitalismo” por V. I. Lenine, principalmente quando este afirma “Monopólios, oligarquias, tendências para o domínio em vez de tendências para a liberdade, exploração de um número sempre crescente de nações pequenas e fracas por um punhado de nações extremamente ricas ou poderosas: tudo isso originou os traços específicos do imperialismo(...)”. Coincidências com o mundo actual? Aos olhos do PCP, absolutamente nenhuma.
Não existe razão absolutamente nenhuma para o PCP defender e legitimar as acções russas. No meu artigo supra-referido, expliquei as declarações do PCP através de um “típico viés político-ideológico, que não é mais que uma mera falácia de autoridade, ou seja, se X diz que é comunista eu vou defendê-lo, independentemente de tudo o resto, porque valores mais altos se levantam”. Acontece que a Rússia não se aproxima em nada dos ideais supostamente defendidos pelo PCP – Liberdade, Igualdade, Socialismo, etc, nem tampouco se define como tal. Então, o que justifica esta tomada de posição do PCP? Só depreendo que seja o ódio visceral que o PCP possui à NATO, aos Estados Unidos e ao seu imperialismo. Infelizmente, o ódio cega e, neste caso, cegou tanto que não conseguem ver o imperialismo russo em todo o seu esplendor.
Este plano russo de dominar a Europa não é novo. O Império Russo por várias vezes tentou alargar a sua zona de influência, de forma a controlar territórios e subjugar populações. Podemos voltar a Rousseau, mais uma vez, quando este afirmou: “O império da Rússia há-de querer subjugar a Europa e será ele o dominado.” Acredito piamente que Rousseau nunca tenha sido traduzido para russo.
O autor não segue o novo acordo ortográfico