O culminar da tirania
Depois da pandemia, a guerra. Vivemos em tempos que certamente a História recordará como conturbados.
Na passada segunda-feira, e depois de vários dias de escalada de tensões na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, Vladimir Putin reconheceu a independência dos territórios separatistas pró-russos na região ucraniana da Donbass. Na quinta-feira, com o pretexto da defesa desses territórios, a Rússia iniciou os primeiros ataques em solo ucraniano e, desde então, parece estar às portas de Kyiv (não Kiev). Foi o início da invasão russa da Ucrânia. Para a compreendermos, é importante olharmos para o passado, para o que nos fez chegar a este ponto e para como a Rússia justifica esta agressão.
A queda da União Soviética e da Cortina de Ferro retirou à Rússia a maioria do seu poder no palco internacional. Países que anteriormente se encontravam sob a influência soviética, rapidamente se adaptaram ao novo modelo dominante, proveniente do ocidente: a Alemanha reunificou-se; Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, Chéquia, Eslováquia, Hungria, Roménia e Bulgária aderiram à NATO e à União Europeia; várias antigas Repúblicas Soviéticas afastaram-se da esfera russa, na Ucrânia, no Cáucaso e na Ásia Central. Entretanto, a economia russa colapsou, fruto de uma transição repleta de corrupção para o modelo capitalista, em que privatizações apressadas e mal planeadas entregaram empresas gigantes a um grupo seleto de oligarcas com ligações políticas.
No meio do crescente descontentamento da população russa e do sentimento de opressão pelo mundo ocidental, Vladimir Putin chegou ao poder, inicialmente como Primeiro-Ministro, depois como Presidente. Durante os seus primeiros mandatos, suportados pelos oligarcas (cada vez mais poderosos), a economia russa cresceu repentinamente, atingindo níveis do pico da União Soviética. De imediato, Putin conseguiu pintar-se como salvador da pátria, como o líder que recuperaria a grandeza que tinha sido roubada à Rússia. Tão rapidamente quanto isso, fez uso dessa imagem para se agarrar ao poder, alternando entre Presidente e Primeiro-Ministro, inicialmente, e aprovando revisões constitucionais para contornar a limitação de mandatos presidenciais, de seguida.

O líder autocrático da Rússia, Vladimir Putin
Fonte: Kremlin.ru, CC BY 4.0, via Wikimedia Commons
Depois da recuperação económica, restou a Putin tentar uma nova expansão territorial ou uma reconstrução de parte da antiga esfera de influência soviética. Começou no Cáucaso, em 2008, com a invasão da Geórgia. Dessa guerra, resultou o fortalecimento de movimentos separatistas na Abecásia e na Ossétia do Sul, territórios onde ainda hoje permanecem tropas russas.
Chegamos, então, à primeira grande agressão à Ucrânia. Em 2014, os ucranianos revoltaram-se e depuseram o presidente pró-russo então no poder, Viktor Yanukovych. Em clara retaliação, a Rússia invadiu, ocupou e anexou a península da Crimeia. Além disso, instigou desde então os movimentos separatistas na Donbass, que culminam atualmente neste conflito.
O expansionismo russo na Geórgia e na Ucrânia levaram a comunidade internacional a impor sanções económicas à Rússia, que fizeram estagnar a economia do país. Em 2018, nesse novo contexto económico, depois de impedir a candidatura do líder da oposição Alexei Navalny às eleições presidenciais e no seguimento de uma reforma pouco popular das pensões, a taxa de aprovação de Putin caiu para níveis que não se verificavam desde a invasão da Crimeia (entre os 60% e os 70%, valores baixos para a realidade russa). Desde então, não voltou a subir significativamente. A imagem do líder forte e intocável dá sinais de desgaste.

A taxa de aprovação de Vladimir Putin desde que chegou ao poder
Fonte: Levada Analytical Center
Para Putin, a forma de segurar o poder parece clara. Com a paralisação na frente económica, consegue manter a imagem de restaurador do Império Russo virando-se de novo para a expansão territorial e para o crescimento da influência russa nos países vizinhos. É essa a motivação de fundo para o novo ataque à soberania ucraniana: um tirano a fazer o que for preciso para não abdicar do poder.
O Kremlin tenta justificar as agressões de outras formas, mas todas elas são fáceis de desconstruir. A principal desculpa passa por querer evitar a “expansão da NATO” para uma posição que ameace o território russo. Sejamos claros: no contexto da “destruição mútua assegurada”, uma expansão da NATO, por muito substancial que seja, nunca resultará numa ameaça à Rússia. Um conflito direto entre a NATO e a CSTO (aliança militar russa) ditaria muito provavelmente o fim do mundo como o conhecemos, num apocalipse nuclear. A NATO não despoletaria tal conflito.
Há mais um ponto fundamental a considerar sobre esta justificação: A NATO não se expande unilateralmente, contra a vontade dos povos. Um governo ucraniano, eleito democraticamente, começou o processo de adesão à NATO em 2008. O governo de Yanukovych viria a suspender o processo, mas a sua deposição levou à eleição de um governo favorável à adesão e a invasão subsequente da Crimeia virou até hoje a opinião pública ucraniana a favor da adesão. A “expansão da NATO” trata-se, afinal, de uma decisão democrática de um povo. Uma decisão que implica mais do que uma aliança militar, mas também de um rumo cultural, social e político que esse povo escolhe seguir. Uma decisão que foi principalmente motivada pelas agressões constantes de um país vizinho que insiste na escalada de tensões e na alienação das democracias que o rodeiam. Se for possível apontar um só responsável pela dita “expansão da NATO”, esse responsável é Vladimir Putin.
Além destas justificações, o governo russo insiste que se sente rodeado pela NATO. No entanto, a sua fronteira com países atualmente pertencentes à NATO – Noruega, Estónia e Letónia – é cerca de 3,5% da totalidade das suas fronteiras terrestres.
Os paralelos históricos têm sido bastante referidos. São óbvios e assustadores: o líder, eleito graças ao descontentamento e ao ressentimento, que tenta surgir como restaurador de um império caído; a justificação de uma ocupação militar completa por algumas regiões fronteiriças com alguma prevalência étnica proveniente do país invasor e porque a posição geográfica do país invadido “ameaça” o seu território. Agora, como no passado, a comunidade internacional ignorou os primeiros sinais, as primeiras agressões, cingindo-se a ameaças que nunca fizeram efeito. Só mostra real preocupação quando pode já ser tarde demais: sanções mais robustas do que as que foram aplicadas depois da invasão da Crimeia, com efeitos realmente impactantes, são praticamente a única ação a tomar num mundo repleto de ogivas nucleares, mas a Rússia está provavelmente mais preparada hoje para sanções do que estava em 2008 ou 2014 e adivinha-se que mostre muita resiliência.

À esquerda, um mapa da Chéquia, colorido conforme o número de falantes de Alemão em 1930; mostra a chamada Região dos Sudetas, com uma forte presença étnica alemã, que viria a ser anexada pela Alemanha, pouco antes da anexação da restante Chéquia. À direita, uma ilustração alemã de 1934; na legenda lê-se “Um pequeno Estado ameaça a Alemanha”
Fontes: Fext, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons; Rupert von Schumacher, Geopolitik, Novembro de 1934
Não sabemos o objetivo final de Putin para a Ucrânia. Pode tratar-se da anexação da Donbass ou até de todo o país. Pode passar pela instalação de um governo fantoche pró-russo, à semelhança do de Lukashenko na Bielorrússia, de forma a recuperar a Ucrânia como aliado dentro da esfera de influência russa. Pode ter apenas como intenção uma destabilização da Ucrânia, com vista a adiar indefinidamente a sua adesão à NATO. Mas algo é certo: estamos perante um choque bastante evidente entre democracia e tirania. Um choque perante o qual não podemos ficar imóveis, por todos os ucranianos.