Notas sobre as eleições autárquicas
No passado dia 27, decorreram as eleições autárquicas e parecem ter marcado uma rutura com o que tem sido a norma dos últimos anos na política portuguesa: o PS parece perder alento, PSD e CDS dão sinais de vida, os “novos partidos” não conseguem consolidar os seus ganhos de eleições passadas. Passemos à análise:
1. O Partido Socialista
Desde que António Costa se tornou primeiro-ministro, o Partido Socialista afirmou-se consistentemente como o maior partido na atual cena política portuguesa: foi o partido mais votado em todas as eleições a que se candidatou desde então. Se, de início, a solução que levou o PS ao governo parecia potencialmente instável, a habilidade política e a maleabilidade de António Costa ajudaram-no a segurar, até agora, ambos os seus governos. A imagem de estabilidade, combinada com o aparente fim da austeridade que a precedeu, trouxeram-lhe popularidade e concederam ao PS um lugar no topo da política portuguesa desde então. Até estas eleições.
Não deixando de ser, por uma margem considerável, a força política mais votada, o PS mostra agora alguns sinais de vulnerabilidade: em termos líquidos, desde as autárquicas de 2017, perde a liderança de 11 câmaras municipais, incluindo a maior câmara do país e a que era detida pelo presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses.
A votação expressiva que mantém justifica-se muito por uma certa vampirização do eleitorado da CDU, coligação à qual ganha 9 câmaras municipais. Pode estar aqui uma fonte de um futuro esfriar de relações com um dos seus parceiros da chamada “geringonça”: a CDU tem de saber distinguir-se do PS nos anos vindouros, sob pena de desaparecer ou, no mínimo, de se condenar à irrelevância.
Em geral, vêem-se rachas no pedestal que Costa construiu para o Partido Socialista. O secretário-geral sabe disto, tendo escolhido fazer o seu discurso de noite eleitoral antes da divulgação dos resultados da Câmara Municipal de Lisboa, para que não tivesse de admitir pessoalmente a derrota e associar a si essa imagem.
2. A Câmara Municipal de Lisboa
Quem, necessariamente, teve de chamar a si a responsabilidade dessa derrota foi Fernando Medina. Depois de uma campanha em que falhou a mobilização do seu eleitorado, por mostrar sempre uma certa arrogância nos resultados que obteria, Medina é, sem dúvida, o grande derrotado da noite eleitoral. Perdeu a câmara municipal e, provavelmente, terá perdido qualquer ambição de ser secretário-geral do PS num futuro próximo, deixando a porta aberta a Pedro Nuno Santos. Aqui, aliás, mais uma derrota para António Costa, que perde aquele que seria o seu favorito a sucedê-lo.
Do outro lado da eleição para a Câmara Municipal de Lisboa, o grande vencedor da noite eleitoral: Carlos Moedas. Apesar de uma campanha francamente desinspirada, o ex-comissário europeu mostrou ser capaz de convencer os lisboetas e aproveitou a apatia do seu adversário para tomar a presidência da maior autarquia do país.
Pessoalmente, estou desejoso de ver o que pode fazer Moedas, a quem reconheço bastante competência e que trará certamente uma lufada de ar fresco à autarquia. Não se adivinha um mandato fácil, estando em minoria na Câmara e Assembleia Municipal, vendo-se forçado a procurar consensos, mas Moedas parece ser capaz de o fazer.
O novo presidente da Câmara Municipal de Lisboa ganha ainda capital político para voos futuros, incluindo quiçá uma candidatura à liderança do PSD – que, dada a sua capacidade de conciliar várias alas do partido, se prevê que venha a ser bem sucedida.

Fonte: Rui Gaudêncio/Nuno Ferreira Santos, Público
3. O Partido Social Democrata
Contudo, essa candidatura não será para já. Rui Rio, há muito tempo a afogar-se na liderança da oposição, ganha nestas eleições uma oportunidade de vir à tona respirar, ganhar fôlego para os desafios que se aproximam. Ao contrário do que se esperava antes da noite eleitoral, parece provável que Rio se consiga segurar à presidência do partido no futuro próximo, tendo silenciado os seus maiores opositores internos.
No entanto, ainda que tenham um aroma a vitória, os resultados destas autárquicas não deixam de representar uma derrota para o PSD: continua a não ultrapassar as votações do PS, muito longe do que outrora foi. Se recuperou, desta vez, algumas autarquias, os resultados destas eleições só podem ser vistos como positivos para o PSD à luz das eleições autárquicas anteriores, as piores da História do partido. Em suma, uma melhoria, mas nada com que o Partido Social Democrata se deva contentar.
De referir aqui que, no texto da semana passada, critiquei abertamente a postura “anti-sistema” que o PSD adotou com alguns candidatos a estas eleições. Congratulo-me agora em saber que esses candidatos não obtiveram qualquer sucesso: na Amadora, Suzana Garcia, que prometia fazer “tremer” o sistema, perdeu com menos de 25% dos votos; no Seixal, os lamentáveis cartazes do partido não resultaram sequer em 10% dos votos, deixando o PSD como 3.ª força política na autarquia.
Em sentido contrário, devo parabenizar os casos de sucesso do partido e das suas coligações, como Carlos Moedas ou José Manuel Silva, que, mantendo a postura séria e moderada que se espera de candidatos do PSD, conseguiram os resultados que trazem nova vida ao partido.
4. A Câmara Municipal do Porto
Por me ser próxima, sinto-me também na obrigação de falar da segunda mais importante autarquia do país, o Porto. Também aqui, o PSD tem algumas razões para celebrar. Ainda que muito longe dos resultados a que Rui Rio, enquanto autarca, tinha habituado o partido, o PSD recupera muito terreno em relação a 2017, em sentido inverso à descida do PS. As votações baixas do partido no Porto, desde 2013, podem justificar-se pela divisão de uma mesma área do espectro político com o presidente Rui Moreira. E, por essa mesma razão, o PSD será provavelmente o partido ao qual mais podemos agradecer o facto de Rui Moreira ter perdido a maioria absoluta que tinha conquistado nas últimas autárquicas.
5. Os “novos partidos”
Noutro detalhe algo surpreendente, a escorregadela dos partidos “novos”. Iniciativa Liberal e PAN não elegeram qualquer autarca, o Livre só o fez em coligação com o PS – elegendo Rui Tavares em Lisboa e fazendo parte da coligação vencedora que reelegeu Nuno Fonseca na Câmara Municipal de Felgueiras.
O Chega, ainda que com um resultado mais expressivo do que seria habitual nas primeiras autárquicas a que se candidata, falha todos os seus objetivos e continua consideravelmente atrás de CDS e CDU. É incapaz de fixar o eleitorado que André Ventura conquistou nas eleições presidenciais, sendo remetido a 4.ª força política, em Monforte, Elvas e Mourão, onde Ventura tinha obtido uma votação expressiva. Mesmo em Moura, onde o próprio André Ventura se candidatou a presidente da Assembleia Municipal, não passa de 3.ª força política. Em geral, só se justifica a votação mais elevada do Chega, quando comparada aos restantes “novos partidos”, pelo facto de ter apresentado candidatos a 5 vezes mais autarquias do que qualquer um dos restantes partidos mencionados neste grupo, não se reconhecendo critério na hora da escolha destes candidatos. Apresentou, aliás, quase o dobro dos candidatos do Bloco de Esquerda, que tenho de incluir neste grupo.
O Bloco de Esquerda obtém, uma vez mais, um resultado desapontante em autárquicas e mostra nunca ter sido capaz de ultrapassar o estatuto de “novo partido” a nível local. Continua incapaz de traduzir a maior expressão a nível nacional numa maior implantação autárquica, comparativamente, por exemplo, à CDU. É sintoma de problemas nos órgãos locais ou na captação de candidatos de interesse que o partido ainda não conseguiu tratar.
É comum dizer-se que as autárquicas têm pouca relevância na análise da política a nível nacional, mas as de 2021 são a exceção à regra. Ou por destacarem tendências inesperadas que ainda não tínhamos descoberto, ou por poderem vir a causar ondas de choque que ainda não conseguimos percecionar, estas eleições vieram agitar o panorama político português. Falta ver a reação dos seus intervenientes nos próximos meses.