O PSD e a pandemia do "anti-sistema" – Parte II


4. O tempo da outra senhora: uma crítica ao retrocesso

Na primeira parte deste texto, ilustrei a renovada relevância do movimento populista e “anti-sistema” dentro do PSD. Gostava agora de analisar a validade deste movimento e discurso.

Referi, nessa primeira metade, que o PSD tinha chegado a acordo com o Chega para formar governo nos Açores, o que, no mínimo, aponta para uma certa indulgência aos traços anti-democráticos deste partido. Não será portanto absurdo que, por hoje, me debruce sobre alguns destes traços e esta forma específica de discurso populista. Outras oportunidades existirão, espero, de criticar as restantes.

O Chega pede uma revisão constitucional de traços anti-parlamentaristas, fazendo em público menções de uma “Quarta República”, que aponta ao fim do atual sistema político em que vivemos. Dado o posicionamento ideológico do partido, adivinham-se pretensões de retorno a alguns aspetos da “Segunda República” – termo não isento de controvérsia que se refere ao Estado Novo –, apelando aos saudosistas deste regime. Fará sentido pensar que este recuo na nossa liberdade possa trazer algum ponto positivo ao futuro da nação? Olhemos à sua inspiração: O Estado Novo, regime autocrático que vigorou em Portugal durante 41 anos – precedido por uma ditadura militar de 7 anos –, trouxe ao país um clima sufocante de opressão, com o fim das liberdades de expressão, de imprensa, de associação, de oposição, etc. Deixou Portugal envolto numa guerra que se arrastava sem fim à vista e que nada deu ao país, senão uma dívida catastrófica, o desdém da comunidade internacional e, especialmente, a perda de milhares de vidas. Mesmo que estivéssemos dispostos a ignorar tudo isto, qual foi o efeito desta forma de governação na economia do país?

É comum ouvirmos que António de Oliveira Salazar era um bom gestor da riqueza portuguesa e que o nosso país “tinha ouro nos cofres” durante o seu governo mas, se é certo que tínhamos então as oitavas maiores reservas de ouro a nível mundial, é também certo que ainda aparecemos hoje em décimo quarto nesse indicador e não será errado pensarmos que este é um valor que pouco interessa ao comum dos portugueses. Mais relevante é falarmos dos indicadores mais comuns de desempenho económico e, especialmente, da qualidade de vida dos portugueses da época, independentemente do valor armazenado nos cofres do Estado que em nada os ajudava.

Gráfico: os 20 países com as maiores reservas de ouro (setembro 2021)

Dados: World Gold Council

Em dados referentes a 1970 (ano da morte de Salazar), o observatório da OCDE colocava Portugal em penúltimo entre os 23 países que então a integravam – só à frente da Turquia – no que se refere ao PIB per capita, indício de falta de produtividade da economia portuguesa, estagnada e antiquada. Os indicadores de desenvolvimento da nação relevantes à data não eram animadores: o 2.º menor número de alojamentos construídos por 1000 habitantes, o 2.ª menor consumo de eletricidade per capita, os 3.º menor número de televisões por habitação, etc.

Em educação, só 6,7% dos jovens entre os 20 e os 24 anos estavam inscritos no ensino superior – só a Turquia ficava atrás. A nível demográfico, outro indicador preocupante: saíam do país, em termos líquidos, cerca de 16 mil portugueses por ano, num brutal êxodo em resposta à falta de condições de vida. Também aí aparecíamos perto do fundo da lista. Estes dois indicadores ilustram a insustentabilidade da economia portuguesa de então: o primeiro por falta de qualificação da mão-de-obra, o segundo pelo decréscimo dessa mão-de-obra, em quantidade.

Gráfico: Produto Interno Bruto per capita dos países-membro da OCDE (1970)

Dados: OCDE

Não se adivinhava um futuro brilhante para a economia portuguesa. Não foi por abafar qualquer oposição ou crítica que o pudesse atrapalhar, que Salazar conseguiu solucionar os problemas estruturais da nação. Também não foi por segurar com mão de ferro os territórios coloniais e por drenar toda a sua riqueza, nem por retirar aos trabalhadores direitos fundamentais de greve ou manifestação, colocando todo o poder de decisão nas mãos dos seus empregadores.

Faz-me assim confusão que movimentos políticos defensores de um retrocesso na evolução que fizemos até à democracia não sejam encarados por todos pelo absurdo que são. Propor um abandono das nossas conquistas em liberdades e direitos, em prol de um sistema similar ao que já falhou integralmente no passado, é de uma falta de sapiência ou de honestidade intelectual com que não podemos compactuar.

5. A lenha para a fogueira

Mas, na realidade, o PSD optou precisamente por compactuar com um partido que defende essa linha de pensamento. Além disso, optou nesta campanha – como tentei mostrar na primeira parte do texto – por se aproximar de alguns traços do mesmo discurso populista que nos trouxe a esta discussão. O partido parece querer abraçar a designação de “anti-sistema” e torná-la parte integrante do seu plano de ação a curto prazo. Um de dois partidos da perpétua alternância governativa em Portugal tenta montar uma frágil fachada, em que finge não ser parte integrante do “sistema”. Contam-nos, afinal, que “sistema” é sinónimo de Partido Socialista e sempre foi. Mas por que razão fazer esse esforço? Existe uma crença dentro dos atuais órgãos do partido em como este discurso lhes trará votos, que não será, de todo, infundada: pode sustentar-se num sentimento generalizado de desconfiança dos eleitores em relação às instituições políticas portuguesas.

A que se deve esse sentimento? Assistimos tão regularmente a exemplos de corrupção e de nepotismo, compadrios entre as pessoas influentes do nosso país que minam a confiança nas instituições e são lenha para alimentar o fogo do populismo. É importante não menorizar a gravidade de qualquer um desses casos ou tentar absolver os envolvidos em algum deles de qualquer culpa, mas também compreender que é possível combatê-los sem que, para isso, procedamos à destruição do “sistema”.

Interessa debater, isso sim, como podemos reformar e fazer evoluir o funcionamento político do país, dentro dos moldes da democracia. Estas reformas terão obrigatoriamente de englobar vários aspetos da nossa república. É necessário que o debate a realizar-se seja capaz de repensar as mais variadas instituições e em maior detalhe do que o que será possível abordar neste texto. Não devemos perder o ímpeto de melhorar toda e qualquer faceta de um “sistema”, que, como qualquer outro, nunca será perfeito. Dito isto, vou mencionar a corrupção como um primeiro mal a combater: para promover uma maior justiça social, mas também para retirar argumentos aos populistas, contribuindo para um mais saudável e produtivo debate futuro.

O governo certamente reconhece esta necessidade e, aliás, já fez elaborar uma Estratégia Nacional de Combate à Corrupção – ainda que tremendamente vaga e de efetividade questionável. Das 7 prioridades delineadas nesta estratégia, destaco a que se refere a “garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais” e a “melhorar o tempo de resposta do sistema judicial”, porque, pessoalmente, gostaria de ver ações concretas neste sentido. Gostaria ainda de ver o PSD a impor-se e a colaborar ativamente num debate aberto e transparente de conceptualização dessas ações. Finalmente, ficaria agradavelmente surpreendido com um PS recetivo a sugestões vindas dessa área do hemiciclo.

O resultado deste debate poderia, por exemplo, passar por mudanças abrangentes ao sistema judiciário português. Em julho, deu-se um primeiro passo neste sentido com a aprovação de uma lei que prevê o aumento de magistrados no Tribunal Central de Instrução Criminal, mas que, afinal, ainda não resultou em mudanças efetivas.

É importante que este debate se desenvolva rapidamente e que resulte num entendimento entre aqueles que são, afinal, os partidos do “sistema” e que representam uma ampla maioria do eleitorado, para que as ações tomadas mereçam a confiança da população portuguesa.

O “sistema” não é fechado nem imutável. Em democracia, temos uma voz: o poder provém das pessoas e só as pessoas o podem legitimar. Podemos contribuir para estas reformas. Uma boa forma de começar é votar neste domingo.


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