O PSD e a pandemia do "anti-sistema" – Parte I
1. As eleições autárquicas de 2021
Aproximam-se as eleições autárquicas. Dentro de poucos dias, realizar-se-á um dos momentos mais importantes da história recente da nossa democracia: depois das presidenciais em plena pandemia, as eleições autárquicas de 26 de setembro de 2021 serão aquelas que alguns poderão finalmente considerar “eleições pós-pandémicas”. Como tal, constituem uma notável oportunidade de avaliar como vai, afinal, o processo democrático em Portugal. São um ponto natural de reflexão interna do “sistema”, depois de uma era atribulada que certamente causará efeitos incontornáveis em todos os aspetos da nossa vida.
E, porque o escrutínio é capital no saudável processo democrático, considero que uma boa forma de celebrar a nossa democracia, num momento que se reveste de tamanha importância, será o escrutínio de alguns aspetos da campanha para estas eleições. Hoje, em particular, a campanha do Partido Social Democrata e o discurso apelidado de “anti-sistema”.
2. O estado do PSD, uma leitura dos últimos anos
O PSD apresenta-se a estas eleições em clara desvantagem. Em primeiro lugar, por ter iniciado a campanha consideravelmente atrás do Partido Socialista em qualquer sondagem ou indicador de popularidade. Mas, mais do que isso, por não se perspetivar qualquer forma de recuperar esse atraso, pelo menos a curto prazo: se o PS não dá indícios de vir a cair na opinião dos eleitores (independentemente dos escândalos que o governo de Costa continua a gerar), o próprio PSD parece querer sabotar as suas próprias aspirações.
Em 2018, Rui Rio foi eleito presidente do partido apresentando-se como a alternativa centrista: depois de décadas de deriva ideológica da sua original matriz centrista, Rio pareceu a muitos o farol que guiaria o PSD de volta às origens. Não obstante o facto de essa campanha à liderança do PSD ter sido notoriamente comedida, entre dois candidatos que não se evidenciavam particularmente diferentes, e de as afirmações que colocaram Rio à cabeça da ala centrista do partido terem sido sempre vagas e desprovidas de promessas concretas.
Ao longo destes três anos, o discurso de Rio não mudou. Escolhe afirmar que “o PSD não é um partido de direita”, tentando pintar-se como moderado, mas o partido contraria essa afirmação nas ações que toma. Rui Rio posiciona-se como perigosamente oposicionista do parlamentarismo, ora alinhando-se com Ventura na redução do número de deputados, ora com Costa na redução do número de sessões plenárias da Assembleia da República com a presença do primeiro-ministro. Por sua vez, o PSD faz acordos de governação com o Chega nos Açores, comprometendo-se a cortar apoios sociais, em desafio aberto da própria matriz sá-carneirista, social-democrata.

Fonte: Partido Social Democrata
3. A campanha social-democrata
A caminho das autárquicas, umas eleições que parecem estar prestes a sentenciar de morte a liderança de Rui Rio, o PSD continua a afundar-se. Movido pelo desespero de tentar recuperar votos perdidos para novos movimentos, numa direita estilhaçada, o partido continua a descaracterizar-se, deixando poucos traços daquele que foi fundado em 1974.
Em Vila Nova de Gaia – contra as próprias palavras passadas de Rui Rio, agora despojadas de qualquer valor, pela mais pura hipocrisia – apresenta originalmente como candidato António Oliveira: um ex-treinador e comentador de futebol. Talvez mais grave do que qualquer destes descritivos, trata-se do maior acionista privado do Futebol Clube do Porto, entidade envolvida em negócios com a Câmara Municipal a que concorria, referentes ao Centro de Estágio do Olival e ao Estádio Municipal Jorge Sampaio. De igual significância, o facto de a candidatura ter caído, não por alguma réstia de bússola moral nos órgãos do partido, mas por desistência do próprio candidato, depois de se ter visto envolvido numa luta de egos com aquele que o viria a substituir.
No Seixal, procura recuperar votos com cartazes que parecem remeter para o estilo de uma Iniciativa Liberal, em que a ideologia dos adversários é sempre sujeita a hipérbole e em que a retórica é simples e repleta de trocadilhos. Nestes cartazes, a candidatura do PSD ao Seixal compara a atual presidência da autarquia, do PCP, aos regimes autocráticos comunistas presentes e passados. Ignore-se, afinal, qualquer nuance. Ignore-se que o PCP se encontra integrado numa democracia desde 1976 (apesar de, por várias vezes, apoiar tristemente esses regimes autocráticos em praça pública). Ignore-se que, desde esse mesmo ano, elege ininterruptamente os presidentes de Câmara do Seixal, sem que o concelho se tenha, por isso, transformado na Caracas portuguesa, como faz parecer um dos cartazes afixados. Noutro cartaz, a candidatura opta também por enveredar na perpetuação de estereótipos, de uma xenofobia lamentável (e óbvia, ainda que o candidato à presidência da Câmara Municipal a tente ignorar, em resposta à Comissão contra a Descriminação Racial). Pelo meio, organiza-se um “Avante Sombra”, em que se recebe de braços abertos Jaime Nogueira Pinto, um dos mais infames politólogos da extrema-direita em Portugal.
Na Amadora, o PSD opta por apoiar a candidatura de Suzana Garcia, com um historial repleto de declarações racistas, xenófobas ou populistas, numa tentativa de cativar eleitores que perdeu para o Chega e que, na verdade, nunca regressarão. Este último exemplo é provavelmente o que recebeu mais atenção mediática durante a campanha, mas é também o que melhor caracteriza o PSD atual: tendo integrado 11 Governos Constitucionais da República Portuguesa (ou seja, até à data, metade dos governos), com mais de 20 anos na governação, o segundo maior partido português da atualidade quer, afinal, disfarçar-se de “anti-sistema”. Aliás, não sou eu que o afirmo, é o próprio partido, que, em cartaz referente a esta candidatura, escreve “O Sistema Vai Tremer”.

Fonte: Visão
Durante esta campanha, o PSD mantém o rumo (ou falta dele) que o trouxe até ao estado atual: tendo perdido a direita para outros movimentos, pela primeira vez desde Cavaco Silva, corre desalmadamente atrás do prejuízo, não hesitando em destruir os seus próprios valores e em manchar o seu nome e a sua história. Pelo caminho, ostraciza o historicamente oscilante centro do espectro político, oferecendo pouca resistência ao domínio do PS e criando dúvidas nos eleitores – maioritariamente moderados – que, apesar de tudo, ainda consegue manter.
Parece claro que o PSD enveredou agora por adicionar notas "anti-sistema" ao seu habitual discurso. Mas o que significa ser "anti-sistema"? Que validade pode ter esta retórica, se alguma? E quais os seus perigos numa democracia moderna? Pretendo analisar este tema nos próximos dias, na segunda parte deste texto.
[Nota do autor, 24 de setembro de 2021: a segunda parte deste texto já se encontra disponível aqui]