A discussão sobre os 2700€
No passado dia 6 de Setembro, o Primeiro-Ministro (PM), António Costa deu uma entrevista à TVI, na qual foi questionado por Miguel Sousa Tavares (MST) sobre a carga fiscal. MST abordou o tema da elevada carga fiscal sobre os salários e deu um exemplo, que passo a citar:
“Um jovem (altamente qualificado) vai para o mercado de trabalho e pagam-lhe o que, para nós, é um belo salário para começo de carreira - 2700€/mês. O seu ministro das finanças fica-lhe com 46% disto, o que resulta, em termos líquidos, em cerca de 1400€. Em Lisboa, paga 1000€ por um T1. Fica com 400€ para viver?” Este exemplo possui vários erros e imprecisões e levanta ainda outras questões de fundo. Vou discutir algumas delas nos próximos pontos:
1 - A falta de noção da realidade. Miguel Sousa Tavares acha que 2700€ mensais correspondem a um bom salário. Seria, de facto, caso não fosse, infelizmente, irrealista. A esmagadora maioria dos jovens, ainda que altamente qualificados, recebe num primeiro emprego menos de 1200€, ou seja, menos de metade do que é sugerido por MST. Aliás, cerca de ⅓ do emprego jovem criado em 2019 oferece o salário mínimo. O desfasamento do exemplo face à realidade é alarmante.
2 - As contas que MST fez estão, claramente, erradas. Consultando as tabelas de retenção na fonte, podemos verificar que um salário mensal de 2700€ desconta 26,5% em sede de IRS (retenção na fonte) e 11% para a segurança social (e não será o ministro das finanças a gerir este último, ao contrário do referido por MST). Perfaz, portanto, 37,5% de carga fiscal sobre o salário bruto, o que resulta num valor líquido de 1688€ (quase 300€ acima do valor que MST refere). Adicionalmente, a carga fiscal sobre este salário não é 1000€ (2700€-1688€), como alguns afirmam. É necessário analisar a taxa efectivamente paga (a diferença entre a retenção na fonte que fazemos todos os meses e o que recebemos/pagamos no final do ano). Na realidade, um salário da ordem dos 2700€ pagará, em termos de IRS, cerca de 16.5%, o que representa uma poupança de aproximadamente 300€ no seu salário médio.
3 - A globalização trouxe-nos bastantes aspectos positivos, (relativamente a este tema recomendo vivamente “A grande escolha” de Adolfo Mesquita Nunes, um óptimo livro, com as questões certas de um ponto de vista liberal). No entanto, trouxe outras claramente negativas, como é o caso da importação do pensamento neoliberal, nomeadamente o exacerbar do sentimento de qualquer imposto ser igual a “roubo”. Muitos dos que se deixam cativar por estas ideias e simplificações esquecem-se de pensar nos anos que estudaram sem pagar, nas consultas e cirurgias sem custos, no apoio social e infraestruturas públicas que usufruíram desde sempre (parques, subsídio de desemprego dos pais, reformas dos avós, …). Ou, caso nunca tenham necessitado de algum apoio suprarreferido, esquecem-se de quem não teve a mesma sorte. A meritocracia funciona bem quando nascem todos no mesmo berço, o que não é o caso da portuguesa e muito menos da sociedade média mundial.
4 - Reduzir o custo do trabalho, isto é, a sua carga fiscal, é perfeitamente válido: a protecção social não deve sacrificar excessivamente o trabalho, conforme afirma Thomas Pikkety (brilhante economista francês, autor de “O capital no século XXI”). No entanto, para manter a solidariedade entre classes e gerações, algo que caracteriza o modelo social e estatal europeu , os impostos vão ser, invariavelmente, altos.
5 - Os impostos devem ser, preferencialmente progressivos. Desta maneira, as pessoas que auferem salários mais baixos pagarão menos impostos, tanto em valor como em percentagem do seu rendimento. Esta é uma das melhores formas de promover a redução das desigualdades. As propostas de salários proporcionais (flat tax), além de estarem claramente datadas - eram a forma mais comum do século XIX - são uma autêntica benesse para os ultra-ricos, como demonstra a figura abaixo representada (Fig. 1.1.). Enquanto os 50% mais pobres foram sendo mais taxados, os mais ricos tiveram, desde os anos 60 um decréscimo das suas taxas efectivas.
Fig. 1.1 - Progressividade nos EUA (dados extraídos do livro "Capital e Ideologia" de Thomas Pikkety).
6- Devemos acabar com o mito de que taxas de imposto elevadas são anti-meritocráticas e reduzem o crescimento. O crescimento na Europa nunca foi tão elevado como nas décadas seguintes à segunda guerra mundial (os chamados 30 anos gloriosos), quando as taxas de imposto mais elevadas atingiam 70% do rendimento tributável (Fig. 1.2.). Actualmente, a taxa mais elevada sobre os rendimentos situa-se em torno dos 40-50%. Esta progressividade permitiu, entre outras coisas, financiar saúde e educação para as classes mais baixas, promovendo o crescimento que beneficia toda a sociedade.
Fig. 1.2 - Crescimento e Imposto progressivo na Europa, em percentagem (dados extraídos do livro "Capital e Ideologia" de Thomas Pikkety).
(Nota: O crescimento na Europa baixa consideravelmente entre 1910-1950 e deve-se, sobretudo, às duas guerras mundiais e à inflação. Tal não se verifica nas séries dos EUA.)
O aumento dos salários não virá de isenções fiscais, tanto para pessoas como para empresas. Assim, devemos apostar no crescimento da nossa economia e proporcionar meios para um maior desenvolvimento das empresas. Esse caminho passará, na minha opinião, pelo fomento da investigação e inovação, pelo desenvolvimento de produtos com valor acrescentado e pela modernização. Não creio que os impostos estejam perfeitamente definidos e deverão ser ainda mais justos. No entanto, temos de decidir se queremos lutar por um estado social ou não. Eu sei qual o estado em que desejo viver.
O autor não segue o novo acordo ortográfico.