Rumo ao socialismo habitacional
Há cerca de um mês, aquando da autonomização do Ministério da Habitação, escrevi um artigo onde esmiucei o estado actual do mercado habitacional, assim como algumas propostas que considerava perniciosas e outras úteis. Desde então, o debate sobre o tema agudizou-se – os relatos que dão conta de situações verdadeiramente ultrajantes são, infelizmente, cada vez mais regulares. Por forma a apressar a resolução do problema da habitação, o Governo rapidamente agendou um Conselho de Ministros e apresentou algumas medidas que pretende implementar, num plano alegadamente ambicioso.
Quando soube que este ia ser apresentado, achei que seria apenas uma mão cheia de nada, dado o histórico da governação socialista desde 2015. Contudo, uma análise mais aprofundada do mesmo provou que a minha inferência estava errada: não é, certamente, uma mão cheia de nada. Não é também uma mão repleta de doces – é antes uma mescla de medidas relativamente ambiciosas, outras verdadeiramente decepcionantes e algumas aparentemente lesivas. A decepção começa logo com o custo projectado, que não ultrapassará os 900 milhões de euros – um valor relativamente curto dado o estado actual do mercado (particularmente se tivermos em conta que passar de um parque habitacional público de 2% para 5% custará algo como 18 mil milhões de euros).
É importante referir, logo de início, que a análise de algumas medidas necessita de um grau de detalhe muito superior ao dado na pequena apresentação do governo. Por exemplo, a medida que prevê que os proprietários beneficiem de isenção total do imposto sobre mais-valias se venderem a sua habitação ao Estado pode ser particularmente útil para aumentar o parque habitacional público, sem que este tenha de construir de raiz algum empreendimento. Todavia, sem saber mais – o limite do valor do imóvel, processamento do pagamento, zonas geográficas de foco –, não se consegue tirar grandes ilações da mesma. Pode ser, efectivamente, uma medida muito útil. Pode, também, ser apenas um truque de ilusionismo, dado que a dotação total do plano é extremamente limitada (a probabilidade de cair nesta última suposição é mais elevada). Porém, passemos às que permitem uma análise mais concreta.
A mais ambiciosa (e quiçá mais impactante) é a que oficializa o término completo dos vistos gold. Sucintamente, os vistos gold foram um regime excepcional, instaurado pelo governo da PaF, para obtenção de investimento estrangeiro. Ao abrigo deste regime, era atribuído um visto de residência permanente e, posteriormente, um visto de cidadania, a qualquer cidadão que investisse em Portugal, independentemente da forma. Era, por isso, um meio para compra da nacionalidade portuguesa e, mais importante, cidadania europeia. Passados mais de dez anos do programa, a análise crua dos números diz-nos que este foi apenas uma porta aberta à especulação imobiliária: de 11 628 autorizações concedidas, 92% foram por compra de imóveis. Apenas 0,2%, uns estonteantes 23 vistos, originaram emprego directo. Mais: a esmagadora maioria das concessões foi atribuída a cidadãos cuja origem é um tanto dúbia, seja pela oligarquia/plutocracia que impera nos países respectivos e pelas suspeitas de branqueamento de capitais. Por tudo isto, só podemos regozijar-nos pelo término deste programa. Em concreto, para o problema em mãos, a ausência de pressão imobiliária advinda deste regime pernicioso irá certamente contribuir para uma normalização do mercado habitacional português.
A suspensão de novas licenças de alojamentos locais (AL) parece também ser positiva, se não for feita de forma discricionária: existem zonas do país onde o AL é apenas um adicional à pressão imobiliária – áreas metropolitanas – e outras onde serve de meio para potenciar o turismo e obter um rendimento pela posse de uma habitação – municípios do interior. Aparentemente, as licenças em zonas de pouca pressão imobiliária vão continuar a existir, salvaguardando os interesses dos pequenos proprietários do interior. Já nas grandes áreas metropolitanas, devido à esmagadora pressão imobiliária para habitação permanente, só podemos salutar o fim de novas licenças de AL.
Infelizmente, as restantes medidas não são tão ambiciosas. A esmagadora maioria tem por base lógicas de mercado, que não são as mais adequadas. Medidas como a que baixa os impostos sobre as rendas ou a que dá conta que o Estado será o garante último das rendas são úteis para aumentar a rentabilidade e a confiança, respectivamente, mas não servem como força motriz para a descida dos preços, nem resolvem o problema da completa ausência de intervenção pública no mercado. Isto não significa que lógicas de mercado sejam algo necessariamente mau – a tríade Estado, mercado e sociedade é, na minha opinião, a melhor forma de organização possível. Contudo, no que diz respeito ao estado da habitação em Portugal, existe apenas ⅓ desta tríade: o mercado. Assim, mais do que as muitas medidas que compõem este plano, o essencial para a resolução do problema seria o aumento do poder do Estado através de um parque habitacional público significativo (por exemplo, superior a 15%).
Por estas medidas ferirem pouco o mercado habitacional, é risível considerar que vivemos num qualquer “PREC Habitacional”. Este, como já o disse por várias vezes, é completamente liberalizado e continuará a ser, mesmo depois destas medidas. Terá um travão extra à especulação, é certo, mas a lógica que o governará será a mesma.
Esta designação (“PREC Habitacional”) teve origem numa medida em particular: a que dava conta do “arrendamento compulsivo” por parte do Estado, isto é, este tornar obrigatório o arrendamento de uma propriedade devoluta (habitações sem utilização, seja porque estão degradadas ou simplesmente vazias) e ser o último garante do arrendamento. Logo aí, surgiram os termos “comunista", "estatizante" ou "bolivariano" para este plano, algo perfeitamente anedótico para um conjunto de medidas de mercado. Mesmo tendo em conta apenas esta medida em particular, que pode ferir as almas mais susceptíveis à intervenção estatal, a designação não é alinhada com a realidade: a medida já existe, em moldes similares, em vários países europeus, como a Dinamarca, Espanha, Países Baixos e Irlanda, sem que tenha ocorrido um qualquer desvio autocrático. Além disso, possuirá várias excepções que a tornarão mais justa e equilibrada.
As tentativas de designar a medida como algo que “roça a expropriação” não são só manifestamente exageradas, por várias razões, como reflectem o estado actual da semântica política. Em primeiro lugar, porque os direitos de propriedade estão consagrados no direito jurídico e não se prevê que voltemos atrás nesse pilar da sociedade moderna (ainda que não existam direitos absolutos e imutáveis). Em segundo lugar, porque não estamos a falar de expropriação, mas sim da utilização da habitação para a sua função social: albergar cidadãos. Em terceiro lugar, porque o proprietário será justamente recompensado pela utilização da sua propriedade e terá um contrato firmado com o Estado e não com o indivíduo. Em quarto lugar, porque o extremismo semântico de nada serve para além de entrincheirar o debate, algo particularmente inútil para resolver o problema.
Mais do que apelidar a medida de má (que não é), urge entender a sua potencial eficácia – infelizmente, será menor do que pensamos. A medida tem por base um número muito veiculado na comunicação social: 700 mil habitações desocupadas. Ora, nem todas estas estão devolutas: em bastantes, persiste algum tipo de arrendamento informal. É precisamente neste ponto que falha a maioria das análises. Olvida-se (ou subestima-se), muitas vezes, o número de arrendamentos sem contrato existentes. Suponho que seja um número difícil de estimar, mas ignorar a sua existência é meio caminho andado para que esta medida não tenha eficácia. Em bom rigor, o que irá acontecer, em número significativo, será a transição de arrendatários do mercado informal para o mercado formal, sem que exista, de facto, um aumento da oferta.
Como vimos, o plano é pouco mais que uma mescla de medidas avulsas, relativamente decepcionante, porque não actua na base do problema: falta de oferta pública. Algumas medidas, como disse, são interessantes, mas pouco sucesso terão para resolver o problema no médio prazo. Para tal, será necessário dotar o parque habitacional público de muitos mais fogos. Importa referir que o Governo diz que tal será feito recorrendo aos fundos do PRR, mas o valor projectado é manifestamente insuficiente para a resolução do problema (estima-se, na melhor das hipóteses, 2,7 mil milhões de euros).
Neste sentido, não entendo os clamores dos mais liberais por “mais oferta”. É óbvio que mais oferta reduzirá os preços praticados, mas estes clamores vêm sempre acompanhados de pedidos para tornar o mercado habitacional mais apetecível ao investimento. Dito por outras palavras, pedem uma descida dos impostos neste sector para que os privados deixem de estar inibidos. Contudo, como referi no meu anterior artigo, o sector imobiliário é dos mais isentos em Portugal. Além disso, o Público noticia que estes incentivos fiscais são, inclusive, um motor na especulação imobiliária. A própria EY corrobora isto num estudo em que comparou os impostos pagos neste sector com alguns congéneres europeus.Talvez fosse útil perceber porque é que não existe mais oferta (ela existe, mas não para o salário médio dos portugueses, porque é mais apetecível e rentável construir habitação de luxo).
As medidas estão, nesta fase, em consulta pública. Faço um repto para que todos possam dar o seu contributo. Podem fazê-lo pelas vias tradicionais (partidos políticos) ou de forma individual nesta página. A contribuição de todos é essencial para que estas medidas não sejam apenas para inglês ver. Ou, melhor dito, para inglês comprar.
O autor não segue o novo acordo ortográfico