Sismos na Turquia: vencidos e vencedores
Com início no dia 9 de fevereiro, tem-se vindo a registar atividade sísmica forte e prolongada na zona ocidental da fronteira entre a Turquia e a Síria. O terremoto original, que registou 7,8 na escala de Richter, é já um dos mais intensos dos últimos anos, sendo seguido por múltiplas réplicas com intensidade maior do que 5. Tal atividade sísmica é naturalmente destrutiva e faria qualquer região do planeta entrar em estado de emergência. No entanto, esta não é uma qualquer zona do planeta, sendo que um conjunto de fatores tem contribuído para deteriorar cada vez mais a situação dos sobreviventes, enquanto jogadores políticos tentam maximizar o seu ganho e oportunidade ou reduzir as suas perdas.
Quem são, então, os principais prejudicados e beneficiados desta situação? De forma pouco surpreendente, os principais prejudicados são as pessoas que perderam a vida, as que perderam família e amigos e, claro, aqueles que temporária ou permanentemente não podem regressar a casa. Dada a sua baixa prosperidade económica, as regiões afetadas não estavam devidamente preparadas para o acontecimento: baixa qualidade das construções, meios insuficientes de socorro, incapacidade de alojar refugiados e limitações logísticas na distribuição de ajuda estrangeira. Adicionalmente, múltiplos atos de corrupção (alguns já condenados na Turquia) contribuíram para piorar a situação, já que os danos mostraram ser ainda mais extensos do que o esperado. Porém, mais grave do que qualquer insuficiência económica ou ato de negligência, temos de considerar as decisões políticas que afetam gravemente os mais prejudicados, particularmente na Síria.
No noroeste da Síria, na fronteira com a Turquia, existe um dos últimos redutos de resistência ao atual regime. Sediados na cidade de Idlib, a Frente de Libertação do Levante (HTS – Hayat Tahrir al-Sham) é um grupo jihadista rebelde, formado em 2017, cujos membros lutam contra o regime de al-Assad desde o despertar da guerra civil síria, com o objetivo de remover o ditador e implementar um estado teocrático sunita. Largamente considerada como uma fação perigosa e instável, a longevidade deste grupo terrorista não é atualmente uma questão de discussão sensível, não havendo qualquer Estado a apoiá-los explicitamente. Independentemente disso, os meios não justificam os fins, e nos últimos anos de guerra civil, em que o governo sírio tem vindo a solidificar a sua autoridade no sul e oeste do país, sucederam-se várias violações dos direitos humanos. Especificamente, a destruição indiscriminada de infraestrutura civil, consistentemente patrocinada pelo governo russo, e restrições repetitivas de ajuda, por parte de entidades não governamentais, à região, particularmente durante a distribuição de vacinas para a COVID-19.
Tendo em conta este panorama, não é de admirar que a destruição causada pelo terremoto esteja a ser explorada pelo governo sírio, que mantém as suas restrições ao envio de ajuda. A violência estatal foi completamente indiscriminada até agora, não havendo lugar para dúvidas quanto à falta de escrúpulos de al-Assad e seus apoiantes. Assim sendo, o seu regime é o grande beneficiado desta situação, visto que o território da HTS foi a zona mais afetada pelo terremoto. A pouco custo económico e político,
Outro grande jogador político da região afetada é, naturalmente, o ditador da Turquia. Enquanto al-Assad é um claro beneficiário do sismo, Erdogan ocupa um lugar mais incerto na atual dinâmica. Por um lado, as histórias de tragédia e heroísmo ajudam a esquecer o estado precário da economia turca, que vinha a ameaçar a legitimidade política de Erdogan, face à sua cada vez mais clara incompetência. Por outro lado, a quebra do equilíbrio geopolítico da região poderá implicar uma onda de instabilidade no futuro próximo. Como referido anteriormente, a HTS não tem qualquer tipo de reconhecimento internacional, pelo menos em termos oficiais, mas a Turquia tem vindo a colaborar com o grupo, em negociações de cessar-fogo e ajuda humanitária. Isto enquanto bombardeia e invade o grupo rebelde vizinho, que goza de apoio moderado por parte de países democráticos. Atualmente, a Turquia já vive uma crise de refugiados, em grande parte alimentada pela guerra civil na vizinha Síria, e que se agravará devido à destruição de infraestrutura turca perto da fronteira. A queda da HTS pode vir a agravar ainda mais a referida crise, visto que uma parte considerável da população da região rebelde, com mais de 1,5 milhões de habitantes, procurará fugir à perseguição política que certamente seguirá a conquista de Idlib. Tal nova onda de refugiados poderá quebrar a capacidade da Turquia de conter migrações em direção à União Europeia, algo que, acoplado com as recentes tensões com a NATO, poderia pôr em causa a utilidade da Turquia para o mundo ocidental, e por sequência, a segurança de Erdogan. Adicionalmente, com o fim dos seus opositores mais extremistas, al-Assad poderá procurar um fim diplomático à guerra, concordando finalmente com a federalização da Síria, legitimando o Partido da União Democrática Curda da Síria (atuais detentores do nordeste da Síria). Um tratado de paz na Síria traria grandes limitações às ações da Turquia, visto que qualquer pretensão de legítima defesa, em relação à sua agressividade contra os rebeldes curdos, cairia por terra. A Turquia deverá tomar, então, a posição mais ativa neste teatro de destruição.
Tanto al-Assad como Erdogan procurarão acima de tudo manter a sua atual posição de poder nos respetivos países. Todavia, a recente catástrofe natural trará certamente uma mudança no balanço de poder na região, que será explorado pelos estados afetados. Adicionalmente, o desenvolver de acontecimentos no futuro próximo poderá levar a União Europeia e a NATO a tomarem posições mais claras e decisivas em relação à região, uma vez que, tal como decorreu no ano passado com a invasão da Ucrânia, os efeitos deste sismo podem espalhar-se por toda a Europa e desestabilizar mais o mundo ocidental.
Ninguém tem culpa de uma catástrofe natural. No entanto, e por culpa dos poderes europeus do passado, este terremoto poderá, novamente, inflamar as consequências do imperialismo e colonialismo a que esta região foi sujeita. Tais consequências têm sido contidas fora da Europa, não obstante existe uma crescente pressão sobre as fronteiras do velho continente, que deverá aumentar com o desenvolver da atual situação. É impossível fazer previsões muito mais específicas do que os cenários explorados neste artigo. Contudo, é altamente improvável que a atual situação geopolítica se mantenha. Apenas o futuro dirá quem age primeiro e quem serão os verdadeiros vencedores desta tragédia, mesmo que já se veja o oportunismo agora.