Pluralismo na imprensa: vende-se


Recentemente, voltou a ganhar ímpeto a possibilidade de uma fusão entre a Media Capital e a Cofina. O Observador avançou a notícia e as ações de ambas as empresas estiveram suspensas até que respondessem às questões da CMVM. Os rumores estão agora muito intensos, mas este trata-se de um galanteio que não é recente: já em 2019, era uma possibilidade muito discutida. Contudo, se então se falava de uma OPA da Cofina à Media Capital, agora o discutido é praticamente o oposto e é a segunda que pretende tomar o controlo da primeira.

A operação de 2019 seria, em parte, financiada por Mário Ferreira, num aumento de capital da Cofina. No entanto, o empresário português acabou por se tornar, através de um grupo de investimentos, o maior acionista e presidente do conselho de administração da Media Capital e abdicou da sua anterior participação na Cofina – aliás, a quebra de confiança parecia total. Todavia, a cortina de fumo caiu e, repentinamente, as relações parecem saradas.

Portanto, se alguém pensa que esta inversão de papéis na transação é relevante, pode deixar cair tal ilusão. Os nomes envolvidos são os mesmos, o dinheiro tem as mesmas fontes e o resultado será exatamente igual: um conglomerado gigante de comunicação social (provavelmente o maior do país), repleto de interesses contraditórios e pouco transparentes, capaz de influenciar a informação que chega a uma fatia muito considerável da população. Para que percebamos, ao certo, a dimensão da influência que este monstro de Frankenstein poderia vir a ter, devemos olhar aos ativos de cada uma das empresas.

A Cofina tem o seu maior ativo nas bancas de jornais: o tabloide Correio da Manhã. É, confortavelmente e há vários anos, o diário em papel mais vendido em Portugal. No ano de 2022, ficou-se por uns escassos 60% (sessenta por cento!) da quota de mercado dos diários generalistas portugueses. Detém, também, o Recordsegundo jornal desportivo mais lido no país – e o Jornal de Negócios – provavelmente, o jornal económico com maior visibilidade –, além de outros jornais menores e várias revistas, como a Flash!, a TV Guia e a Sábado. Para esta presença da empresa nas bancas, a Media Capital poderia contribuir com as revistas Lux e Maxmen, assim como com publicações e agregadores online como o MaisFutebol e o IOL.

Porém, o verdadeiro peso da Media Capital no bolo final far-se-ia sentir na televisão: trata-se da dona da TVI, ocupante de uma das quatro posições da grelha que, até há pouco tempo, compunham a totalidade da televisão em sinal aberto no país. Foi esta circunstância que permitiu à TVI impor-se como um de dois grandes canais privados portugueses – foi, em fevereiro, a segunda estação de televisão mais vista, com 16% do share. Além disso, a Media Capital tem alguns canais menores como a TVI Ficção e a TVI Reality e é responsável pela difusão e pelo controlo editorial da CNN Portugal – o 6.º canal mais visto em Portugal, em fevereiro. A esta dimensão no mercado, somar-se-ia a CMTV, da Cofina (o 5.º canal mais visto), assim como a TV Record.

No total, a empresa resultante da fusão seria dona de canais que controlam mais de um quarto do tempo que os portugueses passam em frente à televisão e teria uma posição dominante nas bancas de jornais. Tratar-se-ia de uma situação similar ou superior à da Impresa, que detém o canal de televisão mais visto (SIC) e o semanário mais lido (Expresso) em Portugal. Tal significaria que uma vasta maioria da informação facilmente disponível à generalidade dos portugueses seria providenciada por apenas dois grupos, num absoluto oligopólio.

Mário Ferreira

Mário Ferreira

Fonte: World Travel & Tourism Council, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons

Não será particularmente difícil de compreender alguns dos perigos associados a um mercado nesta circunstância. Naturalmente, partilharia dos mesmos defeitos dos restantes oligopólios, como um maior incentivo à concertação e à cartelização, diminuindo os efeitos benéficos da concorrência – tanto nos produtos oferecidos ao público como nas condições disponibilizadas a potenciais trabalhadores.

Porém, em relação à comunicação social, devemos estar alerta para riscos ainda mais nefastos. Falamos de um setor onde o pluralismo é fundamental para que o público seja devidamente informado e se possa defender do populismo e da demagogia. Ademais, é um campo que, se controlado por agentes maliciosos, pode facilmente fazer tender a opinião pública e, dessa forma, interferir em decisões políticas. Se deixarmos uma maioria das fontes de informação sob o domínio de uma mão cheia de milionários, este perigo torna-se consideravelmente mais realista.

Para ser perfeitamente claro: não pretendo acusar qualquer dos atuais detentores de grandes grupos de media de terem intenções nocivas – não existe qualquer indício que me permita fazê-lo. Pretendo apenas apontar o facto de este eventual oligopólio facilitar a entrada de quem as tenha. Confiaremos não só nestes empresários mas também nos seus herdeiros ou em qualquer um de centenas de agentes económicos que podem vir a adquirir um destes grandes conglomerados e, numa só operação, tomar o controlo de uma porção significativa dos nossos meios de comunicação e informação?

A imprensa é demasiado séria e importante para ser deixada à deriva no mercado, entregue à selvajaria de um capitalismo totalmente desregulado. Por essa razão, é um setor sujeito a escrutínio adicional de órgãos como a ERC ou a ANACOM. Contudo, estas duas entidades e a Autoridade da Concorrência ficaram a assobiar para o lado quando a possibilidade desta fusão esteve em cima da mesa em 2019. Se o fizeram, foi por não existir enquadramento legal suficientemente robusto para que atuem devidamente e condenem operações destas – a ERC, aliás, lamentou a inexistência de “um regime especificamente aplicável às questões da concentração nos meios de comunicação social”.

A nossa Constituição prescreve que se assegure a “não concentração da titularidade dos meios de comunicação social” (tanto no n.º 4 do art. 38.º, como no n.º 1 do art. 39.º) e a Lei de Imprensa reafirma-o, dizendo que o “direito dos cidadãos a serem informados” é garantido também através de “medidas que impeçam níveis de concentração lesivos do pluralismo da informação”. Para o falecido Mário Mesquita, em declaração de voto de vencido na deliberação da ERC em 2019, este prejuízo do “pluralismo da informação” era evidente no caso da fusão de que falamos: “a análise da programação da TVI e, especialmente, da CMTV [...] mostram à evidência o risco de aumentar a uniformidade na programação e na informação, com prejuízo para o pluralismo e diversidade na paisagem mediática portuguesa”. Todavia, a legislação existente não define, em parte alguma, critérios concretos e objetivos, deixando o leme da nossa informação às subjetivas interpretações dos reguladores.

O problema foi muito debatido no seio da União Europeia na década de 90, enquanto se tentavam estabelecer regras consistentes em todo o espaço europeu e promover um mercado comum também no setor da imprensa: tentou-se, então, definir quotas de mercado máximas por operador (30% para operadores num só mercado, 10% de cada mercado para aqueles que operassem em vários meios). Contudo, a reação de lobistas e de órgãos nacionais fez com que, num primeiro momento, a proposta fosse totalmente mutilada e, quando nem isso foi suficiente, abandonada.

O conceito de quotas de mercado máximas parece, porém, uma das formas mais simples de atuar sobre esta questão e um bom ponto de partida na regulação deste mercado. Já é utilizado, aliás, em alguns países. No Reino Unido, empresas com posições consideráveis num setor da comunicação social (mais de 20%) enfrentam alguns entraves à entrada noutros setores. Na Irlanda, chegou-se ao mesmo limiar de 20% e considera-se “indesejável” que uma só entidade na comunicação social detenha uma quota de mercado superior a este valor, existindo um mecanismo para travar fusões nesse sentido. Outras abordagens podem, por exemplo, passar por benefícios fiscais para os operadores mais pequenos e agravamentos fiscais para os maiores, que poderiam ser, pelo menos em parte, desincentivos à atual procura de consolidações.

Independentemente da forma que escolhamos, algo parece evidente: temos de fazer mais e melhor para salvaguardar o pluralismo na nossa comunicação social. Operações como a que é proposta entre a Media Capital e a Cofina são atentados à qualidade da nossa imprensa e devemos denunciá-las, sob pena de deixarmos a informação que nos chega subjugada aos maiores poderes económicos.


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