A inevitabilidade da baixa produtividade


Existem assuntos que, por uma qualquer espiral argumentativa inevitável, acabam quase sempre no mesmo tema. Quando falamos de futebol, acabamos por discutir arbitragem. Quando falamos de comida, acabamos por discutir restaurantes de que gostamos. Quando falamos de mudanças disruptivas na economia portuguesa, como é, por exemplo, a semana dos 4 dias, acabamos por discutir a baixa produtividade portuguesa.

A produtividade laboral é muitas vezes considerada o calcanhar de Aquiles do nosso tecido produtivo. Esta consideração tem razão de ser: a nossa produtividade é baixa, por comparação com alguns congéneres europeus. Ainda que tenha sido multiplicada por um factor de 2,5 num espaço de 25 anos, como a figura abaixo evidencia, não foi suficiente para não sermos ultrapassados por alguns países e por ver outros, com pontos de partida muito inferiores, aproximarem-se e tornarem-se igualmente produtivos.

Acampada pela habitação, Lisboa, Out.2022

Figura 1. Produtividade laboral real por hora, em euros.

Fonte: Pordata

Para que possamos evoluir a nossa economia para uma nova etapa de desenvolvimento, necessitamos de melhorar significativamente este aspecto. A discussão da produtividade é, por isso, de extrema importância. Contudo, a análise dos dados resulta quase sempre em fórmulas discursivas que não se coadunam com a realidade. Quando o tema da produtividade entra nas conversas, o mais comum é ouvir-se: “o trabalhador português é pouco produtivo”, “entra tarde e a más horas” ou “passa mais tempo na pausa do café que a trabalhar”.

Estas considerações taberneiras e ignóbeis ocorrem, de forma mais ou menos inócua, em múltiplas discussões “de café”. Contudo, o caso afigura-se grave quando poluem debates televisivos e jornais e são proferidas por supostos especialistas do tema, como professores, gestores, investigadores ou intelectuais. Tais divagações irreais com projecção significativa, para além de formarem uma opinião pública errada, servem dois propósitos. O primeiro é colocar o ónus da nossa baixa produtividade no trabalhador, permitindo que não se faça uma discussão séria sobre o tema. O segundo é fornecer um mantra ideológico para manter o statu quo, que impede a resolução ou mitigação do problema.

Por isso, antes de discutir o porquê da produtividade laboral ser baixa, importa circunscrevê-la claramente. Esta pode ser definida de várias formas – a que hoje trago é uma das mais simples, mas que serve perfeitamente para esmiuçar a questão: a produtividade laboral é o quociente entre o valor acrescentado e as horas gastas nesse valor acrescentado. Portanto, o valor da produtividade, resultante da sua definição, nada nos diz sobre a qualidade dos trabalhadores e a sua eficiência.

É, inclusive, irreal crer que o trabalhador médio português é mais preguiçoso ou menos produtivo que um de qualquer outra nacionalidade – as tentativas de justificar porque é que um determinado grupo é mais produtivo que outro começaram há muito, quando Max Weber justificou a elevada produtividade alemã com a ética protestante, mas nunca vingaram. Para deitar por terra tais teorias, basta mostrar que vários trabalhadores portugueses emigram para países com economias mais avançadas e contribuem para elas de forma significativa, sem que se lhes aponte uma menor produtividade por comparação com os pares. Como, também, migram para economias menos desenvolvidas, e ficam extremamente manietados na sua produtividade. Olhar para o valor da produtividade e inferir que os nossos trabalhadores são poucos produtivos é, portanto, um exercício de pura especulação, sem qualquer base de sustentação.

Desmontada esta falsa inferência e lógica discursiva, centremo-nos na pergunta “para um milhão de euros”: porque é que a nossa produtividade é baixa? A resposta não é simples, nem se esgota neste artigo, mas passa pelo facto de a nossa economia se basear num modelo “produtivo” de baixo valor acrescentado. Coloco “produtivo” entre aspas porque a nossa economia é cada vez mais dependente dos serviços de baixo valor, nomeadamente o turismo, e menos na produção propriamente dita (pensada, tipicamente, como industrial).

O valor acrescentado numa economia depende de inúmeros factores e a sua combinação ditará uma maior ou menor produtividade laboral. A “qualidade” do trabalhador é, naturalmente, um destes, mas não é, de todo, o mais importante e, como vimos, numa Europa cada vez mais similar, o trabalhador médio é igualmente eficiente. A mão-de-obra é, contudo, o factor mais visível e, tipicamente situa-se no fim da linha dos processos produtivos, o que lhe dá uma exposição acrescida. Assim, como referido atrás, os trabalhadores tornam-se, por excelência, o bode expiatório para a baixa produtividade nacional, permitindo que não se actue junto dos principais problemas estruturais da produtividade.

Existe, então, uma influência mais do que significativa de outros factores na produtividade laboral, que, no caso português, para além de a diminuir, restringem a do trabalhador. Muitos são bastante conhecidos e estão perfeitamente identificados: baixa escolaridade de forma geral, industrialização tardia; produção assente em produtos e serviços de baixo valor; preferência por produtos e serviços intensivos em mão de obra barata, ao invés de tecnologicamente avançados. Estes factores macro são, verdadeiramente, um gargalo (bottleneck) que nos impede de prosperar. Contudo, muitos mais se podem elencar, nomeadamente alguns micro.

A produtividade do capital investido, as qualificações dos gestores, a viscosidade dos processos e a morosidade na adopção de tecnologias, são factores muitas vezes preteridos na análise da produtividade – algo anedótico, dado que estes influenciam significativamente outros. Existe, naturalmente, uma interdependência dos factores, que torna difícil quantificar a sua contribuição individual para a criação de valor, mas não deixa de ser curioso como estes, tipicamente alheios ao trabalhador, não são sequer referidos – a inevitabilidade discursiva de culpabilização do trabalhador é, em suma, bem sucedida.

Outro decaimento discursivo que surge quando se discute a produtividade é a afirmação de que não podemos aumentar os salários enquanto a produtividade não subir. Para além de termos visto atrás que a produtividade depende de muitíssimo mais do que do esforço dos trabalhadores, os salários médios não acompanharam a sua subida nas últimas duas décadas. A figura 2 mostra o hiato entre o salário médio real e a produtividade, desde o final da segunda guerra mundial. Até meados da década de 70 (o fim do período keynesiano), o salário médio acompanhou, grosso modo, a produtividade, num exercício de redistribuição dos ganhos por toda a sociedade. Todavia, desde então, a produtividade aumentou 64,6%, enquanto os salários apenas 17,3%. Ocorreu, assim, como vários economistas já tinham alertado, uma transferência do valor acrescentado dos salários para os rendimentos de capital.

Hiato entre produtividade e salários

Figura 2. O hiato entre a produtividade e o salário médio, ao longo dos anos.

Fonte: Economic Policy Institute, State of Working America Data Library, “Productivity and hourly compensation,” 2022

Assim, a lógica de que os salários só podem aumentar quando a produtividade subir não se verifica, porque estes já não a acompanham há várias décadas. É, por isso, de duvidar da eficácia real de tal proposta – aparenta ser, novamente, uma maneira de manter o statu quo. Só que aqui o efeito é ainda mais gravoso: acontece um efeito de bola de neve, onde os baixos salários apenas geram produções de baixo valor acrescentado, criando um ciclo vicioso difícil de romper.

Ultrapassar todos estes problemas, por forma a resolver a baixa produtividade portuguesa não é fácil, porque envolve a mudança de todo um paradigma que vigora há séculos. Aumentar qualificações de forma generalizada demora décadas. Mudar o foco do investimento para os retornos a longo prazo, ao invés do curto, é complicadíssimo com empresas pouco capitalizadas. Adoptar novas tecnologias e transicionar para uma economia digital é particularmente difícil quando a produção é assente em produtos intensivos em mão de obra barata. Evitar a sangria de “capital humano” para economias mais avançadas (e interessantes) será uma ilusão enquanto os salários forem baixíssimos. Ainda assim, tudo isto tem de ser feito, sob risco de perdemos de forma irreversível o comboio da produtividade.

Se quisermos ser competitivos e prosperar, temos de fazer mudanças estruturais em múltiplos aspectos da nossa economia – algo verdadeiramente complicado, num país que aparenta estar inanimado, conformado e que se deixa envolver por inevitabilidades discursivas falaciosas. Urge, primeiramente, romper com essa espiral discursiva – algo para o qual espero que este artigo contribua – e, depois, evoluir para um novo futuro produtivo, muito mais risonho.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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