Repitam comigo: descidas no IVA não funcionam


Desde que a inflação atingiu em força os bens essenciais, a discussão em torno do aumento insuportável do custo de vida tornou-se norma no nosso quotidiano. A contestação e as diversas manifestações pressionaram os agentes políticos e económicos a agir – uns mais tardiamente do que outros –, por forma a mitigar a mais do que óbvia falha do mercado.

Espanha adiantou-se nesta corrida: no início do ano, decidiu eliminar o IVA em certos bens essenciais. A lógica da medida é facilmente compreensível: os preços são compostos por uma multiplicidade de factores, incluindo, também, impostos. Ora, se os impostos sobre o consumo, que são pagos na totalidade pelos consumidores, forem eliminados, os preços baixam nessa exacta medida.

Se a lógica teórica é simples, a realidade mostrou-se bem mais complexa: os preços dos bens essenciais não cessaram de aumentar, mostrando que o alívio fiscal foi engolido pela subida dos preços, traduzindo-se numa “redução” temporária dos mesmos (mesmo em teoria, vários fiscalistas davam conta que uma redução do IVA seria apenas uma criação de renda para os retalhistas).

É importante que tenhamos em conta que descidas discricionárias no IVA, que reunem vários adeptos em Portugal, como a Iniciativa Liberal ou o PAN, nunca funcionaram nos mais diversos mercados como motor para a descida dos preços: não funcionaram nos restaurantes em França, não funcionaram nos cabeleireiros na Finlândia e, agora, não funcionaram nos bens alimentares em Espanha. Isto não quer dizer que não possa servir como um incentivo, em casos muito bem detalhados, para ajudar a guiar a procura – simplesmente, por si, não garantem a descida dos preços.

Foi, por isto, que escutei com grande choque o Primeiro-Ministro a admitir a possibilidade de aplicar uma medida similar à de Espanha. Enquanto equacionava a escrita deste artigo, já Fernando Medina fazia uma conferência de imprensa em que anunciava os traços gerais da medida (que são, efectivamente, muito gerais).

Cabaz de bens alimentares

Cabaz de bens alimentares.

Fonte: Leonie Wise, via WikimediaCommons

O governo, que por várias vezes, e bem, se demarcou de aplicar uma medida similar, sucumbiu, por fim, ao populismo liberal. O resultado de tal medida está mais do que estudado pela literatura e pela experiência empírica: veremos uma continuação da escalada dos preços, uma poupança nula por parte dos consumidores, uma redução da receita fiscal por parte do Estado e, neste caso particular, um aumento da margem da cadeia de distribuição. A medida per se, é, por isso, totalmente ineficaz e não resultará em vantagem nenhuma para os consumidores. Mais: no futuro, quando a situação estabilizar e o governo quiser retomar o IVA nos bens alimentares, o preço irá subir na exacta medida desse imposto, mostrando que as subidas no IVA são totalmente passadas para os consumidores e as descidas ficam retidas numa mão invisível (como a literatura evidencia).

Este caso é ainda agravado pelo facto de falarmos de bens essenciais, com procura inelástica (bens cuja necessidade é absoluta e que, por isso, a procura continuará a existir, independentemente do preço), e do mercado retalhista em Portugal ser um claro exemplo de oligopólio, com vários casos e indícios de práticas anti-concorrenciais, que desvirtuam qualquer lógica de competição que tenha como objectivo o benefício dos consumidores. Estas duas considerações apenas cimentam as inferências feitas anteriormente.

Digamo-lo claramente: esta descida do IVA será apenas uma renda oferecida aos grandes retalhistas, cujo poder de mercado (grosso modo, quota de mercado) é absolutamente esmagador. Essa é, aliás, uma das razões para que os nossos bens alimentares estejam a um nível de preços similar ao de muitos países da Europa, mesmo sendo os nossos salários bastante inferiores. Se o objectivo do governo é esse, será mais simples e menos burocrático passar um cheque no valor total da medida e distribuí-lo pelas principais cadeias alimentares.

O pensamento do Primeiro-Ministro, de que os consumidores necessitam de ajuda no momento e que, por isso, não faz sentido uma descida do IRS, é lógico e correcto – devemos actuar com medidas que impactem o mercado agora, porque o problema exige premência. Todavia, o pensamento é incoerente com o resultado prático desta medida. Faria muito mais sentido um aumento do poder de compra dos agregados, como uma transferência mensal, progressiva, para os agregados de classe baixa e média. Isto se o governo não quisesse actuar verdadeiramente no mercado, porque caso tivesse esse interesse, poderia fixar margens por grupos de bens alimentares, ainda que de forma temporária.

O título deste artigo é extremamente assertivo, para usar um eufemismo, e pode ser corroborado pelos vários exemplos evidenciados. Contudo, estou em condições de afirmar que não é totalmente correcto – seria mais correcto algo como “a descida do IVA pode funcionar”. Esta consideração depende da resposta à pergunta “funciona para quem?”. Para os retalhistas, neste mercado, funciona perfeitamente – podem manter preços, subir margens ou ainda ganhar quota de mercado. Para os consumidores, para todos nós: não, descidas no IVA não funcionam.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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