A democracia a funcionar


Na passada sexta-feira concluiu-se a constituição da nova Mesa da Assembleia da República. O processo de escolha e os nomes obtidos merecem ser sujeitos a algum escrutínio.

Começando pelo novo Presidente da Assembleia da República, que já tinha sido eleito no primeiro dia da legislatura, Augusto Santos Silva parece-me uma escolha acertada. O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros tem experiência diplomática que, certamente, será aplicável a algumas funções de moderação enquanto Presidente da Assembleia da República e que o poderá ajudar a transmitir uma melhor imagem de imparcialidade, que faltou com Eduardo Ferro Rodrigues. Além disso, tem sempre apresentado, ao longo de toda a carreira, uma postura marcada pela seriedade e pela classe, que trará o devido gravitas ao cargo que representa a segunda figura do Estado Português.

Passando às escolhas para vice-presidentes, os nomes vindos dos dois maiores grupos parlamentares, Edite Estrela e Adão Silva, são pouco surpreendentes. A primeira já era vice-presidente da Mesa. O segundo foi, até aqui, líder parlamentar do PSD. Ambos têm imensa experiência parlamentar e serão, decerto, extremamente competentes no desempenho das suas funções.

Há, nestas escolhas, pouco a apontar, da minha parte. Ao invés, tenho uma resposta àqueles que continuam a criticar a escolha de Edite Estrela pela sua associação a José Sócrates. Que o antigo primeiro-ministro seja tão excluído da política quanto possível, concordo perfeitamente. Que mancha os currículos dos nomes que lhe foram mais próximos, também concordo. Daí a impedir que esses nomes sigam a sua carreira vai uma longa distância. Tanto quanto sabemos, Edite Estrela não esteve envolvida nas ações ilícitas associadas a Sócrates. Que esta não soubesse o que se passava nos bastidores do governo Sócrates – ou, no mínimo, que pouco pudesse fazer para o impedir – pode, a alguns, parecer improvável, mas não será certamente impossível. Num país onde, felizmente, continuamos a dar valor à presunção de inocência, até prova em contrário, Edite Estrela deve continuar a desempenhar qualquer função para a qual seja democraticamente eleita.

Já do terceiro maior grupo parlamentar, Chega, vieram duas candidaturas. A primeira foi a de Diogo Pacheco de Amorim. O nome do ideólogo do partido já era falado há muito para esta candidatura. Nem o facto de ter pertencido a uma organização terrorista, nem o de ter estado ligado a movimentos neossalazaristas, contiveram aqueles que o queriam ver num dos maiores órgãos do regime que, durante a maioria da sua vida, tentou ativamente destruir. Na verdade, esta escolha só se explica porque, ao sugerir o nome mais chocante na sua bancada parlamentar, o Chega assegurou o chumbo da candidatura, permitindo-lhe que, uma vez mais, se colocasse no papel da vítima, de que tanto tem feito uso.

Quando o chumbo se concretizou, o partido lançou uma segunda candidatura, a de Gabriel Mithá Ribeiro. O deputado do Chega passou grande parte dos últimos anos a negar a existência de racismo em Portugal. No entanto, a cor da sua pele foi mesmo a principal explicação que conseguiu descortinar para que a sua candidatura tenha também sido chumbada. Aparentemente, não se deve recordar de outros detalhes que desprestigiariam por completo a Mesa da Assembleia, como o facto de este indivíduo se tratar de um professor que defende agressões a alunos.

Finalmente, do quarto maior grupo parlamentar, veio a candidatura de João Cotrim de Figueiredo à vice-presidência da Mesa, que me surpreendeu, quando anunciada. No entanto, refletindo sobre ela, fez bastante sentido. Para começar, trata-se do único deputado da Iniciativa Liberal com alguma experiência no Parlamento. Além disso, sentando-se na Mesa da AR, abriria espaço a que outros deputados da IL se destacassem durante os debates. Num partido que tem feito um claro esforço de não se tornar um movimento “de um homem só”, tentando trazer à esfera pública diversas personalidades e mostrar os quadros ao seu dispor, a candidatura de João Cotrim de Figueiredo cada vez mais me pareceu a única que faria sentido a partir da IL.

Fotografia de João Cotrim de Figueiredo

João Cotrim de Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal. Viu chumbada a sua candidatura a vice-presidente da Mesa da Assembleia da República

Fonte: ALDE Party, CC BY-NC-ND 2.0

Fez-me, então, tremenda confusão ver o seu nome chumbado pelos seus colegas deputados. Ao contrário dos candidatos apresentados pelo Chega, Cotrim de Figueiredo nunca tomou posições que possam ser encaradas como anti-democráticas, nunca se opôs fundamentalmente ao nosso regime e mostrou sempre, no hemiciclo, uma postura de respeito pela instituição que integra. Como tal, a sua rejeição só se pode explicar por motivos meramente ideológicos (o que iria contra o que tem sido feito até agora e abriria precedentes perigosos) ou por jogadas partidárias e defesas imaturas de egos. Sabemos hoje que muito se explica através da segunda opção: o chumbo deveu-se, em larga medida, a uma vingança mesquinha da bancada parlamentar do PSD, por ter visto brevemente em aberto a possibilidade de um deputado da IL se vir a sentar numa bancada da qual os sociais democratas se acham senhores. Não é de ignorar, no entanto, como destacou Rui Rio, que o grupo parlamentar do PS é, por si só, suficiente para eleger qualquer vice-presidente e que poderia ter evitado este desfecho.

Devo ainda deixar uma nota elogiosa para a reação do líder da Iniciativa Liberal à rejeição da sua candidatura: questionado pela imprensa, respondeu apenas que “é a democracia a funcionar”. Mostrou respeito pelos processos democráticos previstos na lei e aceitou a decisão, em claro contraste com os restantes nomes não aceites.

Findas as peripécias, mais uma Mesa da Assembleia da República em mais uma legislatura. Resta desejarmos que faça um trabalho digno e honre o país e o regime que representa – mesmo se acharmos que este processo não os honrou.


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