Agora que o Mundial acabou
Antes do Campeonato do Mundo de Futebol começar, não se falava de outra coisa a não ser da falta de direitos humanos no Catar. Várias notícias davam conta dos inúmeros mortos aquando da construção dos estádios, dos atropelos aos direitos humanos e à liberdade ou ainda da corrupção e poluição. Outubro e Novembro foram repletos de indignação mais do que justificada para esta paródia de circo futebolístico. Infelizmente, tudo mudou a 20 de Novembro: a bola tinha começado a rolar.
Se, inicialmente, achei que as várias campanhas de informação, boicote e repúdio ao Mundial iriam ter algum resultado, rapidamente me apercebi de que nada ia acontecer – iria ser business as usual. O fluxo informativo que dava conta dos atropelos aos direitos no Catar diminuiu drasticamente a partir do apito inicial do Mundial. Já nada interessava para além dos resultados dos jogos, das análises técnico-tácticas e das suposições e contas normais a um evento desportivo. O mesmo diz Carmo Afonso: “o mundo ocidental deixou cair a contestação política com que marcou o arranque do Mundial”.
A FIFA, conhecida pelas escolhas duvidosas de países para o seu sportswashing – veja-se o caso do Mundial da Argentina, em 1978, ou do Mundial da Rússia, em 2018 –, fez das suas novamente. O Catar não fica atrás de nenhum dos regimes referidos. Cumpre, aliás, todos os critérios para ser um pária internacional: é uma sociedade típica do século XV, onde impera a escravatura, a segregação de não-catarianos, um papel inferior reservado para as mulheres. Em suma, um país conhecido pela ausência de direitos e inexistência de liberdades várias. Mas, se assim o é, porque não é excluído pela comunidade internacional? Se cumpre os critérios para ser um pária, porque não o é? A justificação para a sua inclusão na comunidade internacional prende-se com a financeirização do seu regime. Vejamos.
Acima, enumerei vários atentados aos direitos humanos que existem neste país. Contudo, para que a descrição do Catar fique completa é necessário, pelo menos, referir as inúmeras jazidas de petróleo e gás natural que possuem, e que figuram entre as maiores do planeta. O Catar é, então, conhecido, para além da inexistência de direitos humanos, por ser um país com enorme preponderância e influência económica no mundo. E faz uso dessa capacidade com prepotência – tal como um polvo, possui tentáculos em todas as economias mundiais, grandes e pequenas, inclusive em Portugal. A influência do regime não fica por aqui – não só o dinheiro provindo da exploração de combustíveis fósseis (e de humanos) compra acções de diversas empresas, como compra a atenção do Primeiro-Ministro português para negócios e parcerias.
O animismo que fiz entre o Catar e um polvo não é displicente, dada a capilaridade e extensão dos seus tentáculos económicos – chegou ao ponto de comprar o lugar de anfitrião deste Mundial. Outros casos tornam-se agora visíveis, como escândalos de corrupção junto de altas figuras de instituições europeias, num processo já conhecido como Qatargate. Note-se que o momento para o rebentar desta polémica em particular é agravado pelo facto do Catar estar a tentar fechar, a todo o custo, contratos de fornecimento de gás com a UE.
Todos estes casos (pouco esmiuçados, diga-se) levam-nos a concluir que existe um critério semi-oculto para a atribuição do termo “pária” a um qualquer país: a sua riqueza. Se o país for relativamente pobre e com poucas riquezas naturais, merece a exclusão internacional. Se for rico, com potenciais investidores, devemos esquecer as falhas dos direitos humanos, como nos lembrou o Presidente da República. Até poderíamos dizer que é realpolitik no seu melhor, mas é mais do que isso. É a demonstração da completa imoralidade das altas instituições políticas e económicas. E engana-se quem acha que estas estão num qualquer vácuo, ausente da realidade humana, ou que são amorfas. Se existe imoralidade nas instituições, é porque a imoralidade é nossa – da sociedade.
Continuemos para outra questão que me assolou: porque é que inicialmente nos indignamos com a ausência de direitos humanos e deixamos o assunto desvanecer assim que bola começou a rolar?
Respondo claramente à questão para que não haja qualquer dúvida: o futebol ocupa um valor desmedido na nossa vida. Se até pode ser relativamente simples de entender porque é que alguém trai valores intrínsecos à humanidade para obter bens materiais, não compreendo como se consegue ignorar violações claras do direito internacional (e da moral) só porque vinte e dois jogadores estão a correr atrás de uma esfera. É-me difícil conceber esta sociedade onde as prioridades se invertem e os direitos humanos são preteridos por um qualquer golo de fora da área.
A comunicação social possui também alguma culpa no cartório: sabem o que as audiências querem e transmitem-no. Contudo, o ónus principal não está no veiculador da mensagem mas sim no receptor – não no indivíduo per se, mas no seu conjunto. Isto é, a sociedade promove a alienação necessária, para que os valores corretos se invertam, porque necessita dela para a sua manutenção. Se todos nós déssemos um cartão vermelho a esta sociedade, e tivéssemos primazia pelos valores correctos, não haveria qualquer campanha de charme do Catar que resultasse. Existem valores que se elevam acima de tudo: a igualdade, a liberdade, a fraternidade, a paz. Aparentemente, para esta societas, não se elevam acima de um cabeceamento para golo.
O caso não é, de todo, simples. Mudar por completo a alienação de uma sociedade e o foco do futebol para as questões estruturais – económicas, sociais e políticas – é uma tarefa hercúlea. O problema é agravado quando a “futebolização” chega aos mais altos cargos políticos e sociais. É certo que os políticos são pessoas normais, como o comum dos mortais. Não são puros, virtuosos ou sãos – mantêm a dupla condição humana: meio anjo e meio diabo. Contudo, nada justifica a presença desmedida e sobre-representação de políticos no Catar. Não justifica também que o Presidente da República se torne um comentador digno de um qualquer tasco, onde só se dizem boçalidades e banalidades. Não queria, de todo, adicionar “comentário futebolístico” aos meus critérios de escolha do Presidente da República, mas parece que não terei outra opção em 2026.
O Mundial ficou atribuído à Argentina, mas houve uma equipa que nem sequer se qualificou: os direitos humanos. Os direitos das mulheres, da comunidade LGBTQIA+, das crianças; a democracia, a representação, a justiça; a liberdade, a luta contra o jugo autocrático. Nada disto entrou neste mundial. Por isso, mais do que aplaudir o vencedor, olhemos para o derrotado e para quem o permitiu – todos nós.
O autor não segue o novo acordo ortográfico