Amanhã há de ser outro dia


Num país habituado a que os assuntos políticos rocem o ridículo, como a primeira campanha do palhaço Tiririca (reeleito novamente deputado federal no início do mês), ou debates puramente baseados em escândalos, com pouca ou nenhuma substância, os brasileiros terão de resolver já no próximo domingo a disputa eleitoral para a presidência da República. Os candidatos – Lula da Silva e Jair Bolsonaro – são duas caras muito conhecidas da política brasileira. O primeiro foi Presidente do Brasil entre 2003 e 2011, o segundo é o actual. A escolha, essa, não poderia ser mais simples. Sei que é uma afirmação prepotente. Espero até ao fim do artigo mostrar ao leitor que, apesar da prepotência, é verdadeira.

Antes da primeira volta das eleições, praticamente todas as sondagens anunciavam Lula da Silva como próximo Presidente da República, sem necessidade de segunda ronda. Algumas, inclusive, com resultados absolutamente esmagadores para o ainda Presidente Jair Bolsonaro. Na altura, este esperneou e desconsiderou as que lhe atribuíam um resultado negativo – tarefa hercúlea, diga-se, dada a ínfima quantidade de sondagens que lhe davam um resultado favorável. Todavia, ao contrário do esperado, e do que as sondagens previam, as presidenciais não ficaram resolvidas na primeira volta. Lula da Silva ganhou, é certo, mas com um valor bastante abaixo do apontado.

Gráfico com os resultados da primeira volta das eleições presidenciais brasileiras de 2022

Gráfico 1: Os resultados da primeira volta das eleições presidenciais brasileiras de 2022, comparados com os de 2018

Entender as razões que levaram ao falhanço das sondagens, e consequente necessidade de uma segunda volta, é uma tarefa interessante. Porém, é muito mais estimulante perceber o rumo que cada candidato pretende para o Brasil. Digamo-lo claramente: os dois candidatos são diametralmente opostos. Vejamos algumas diferenças entre eles.

Como referido atrás, Lula da Silva foi Presidente entre 2003 e 2011. Segundo o WorldBank, a pobreza no Brasil desceu de mais de 12% para 5% durante a sua presidência. O indicador de Gini (que mede a desigualdade) também desceu de 0,57 para 0,52 no mesmo período. Infelizmente, por falta de dados fechados, não é possível tirar grandes ilações destes indicadores quando nos referimos ao mandato de Bolsonaro. Contudo, as notícias não afiguram nada de positivo: pobreza como nunca antes vista, orçamentos reduzidos para escolas, previsão de menos verbas na saúde. Ainda que os números não estejam totalmente claros, podemos antever que Jair Bolsonaro deixará o Brasil mais pobre, mais iletrado e mais doente.

Um outro parâmetro de análise interessante, quiçá mais palpável que os indicadores macroeconómicos previamente descritos, é a evolução do salário mínimo. O gráfico 2 mostra o salário mínimo real (anual), em R$, ao longo dos vários anos.

Salário mínimo real (anual) em R$

Gráfico 2: Salário mínimo real (anual) em R$

Dados: Instituto de Pesquisa Económica Aplicada

Conseguimos verificar que o período pós-ditadura militar, ainda que com ganhos sociais consideráveis, como a liberdade política e associativa, não trouxe liberdade no campo da economia. Somente durante a presidência de Lula é que o salário mínimo real no Brasil aumentou de forma significativa (mais de 50% durante os seus dois mandatos), o que permitiu o mínimo de existência material a toda uma classe renegada e excluída. A presidência de Bolsonaro não trouxe nenhum ganho substancial neste aspecto, mantendo-se o status quo face aos mais desfavorecidos – isto é, impediu a progressão através do elevador social.

Sintetizemos: a presidência de Bolsonaro é caracterizada por uma diminuição das transferências sociais e da remoção de apoios niveladores da sociedade como a saúde e a educação. No início do século, quando ainda era deputado federal, Bolsonaro foi o único a votar contra um plano de combate à pobreza, com a argumentação risível de que esta iria provocar clientelismo e aumentar os impostos. Vinte e dois anos volvidos, conseguiu colocar em prática o que anteriormente lhe tinha sido negado – tornar a pobreza endémica e uma sina obtida ao nascimento. Não é, por isso, de estranhar que Lula da Silva granjeie mais apoio junto das classes económicas mais desfavorecidas, como o evidencia o gráfico 3.

Distribuição salarial em função do salário

Gráfico 3: Distribuição dos votos em função do salário auferido

Dados: Sondagem da Datafolha

A sondagem que dá origem ao gráfico 3 mostra que o ex-Presidente Lula ainda tem um grande apoio junto da população mais pobre, por oposição a Bolsonaro, que é bastante repudiado por esta faixa da população. A correlação não é somente notória – é esmagadora. E mesmo nos brasileiros com salários mais elevados (mais de 10 salários mínimos), a vitória do ainda Presidente é mínima. Embora a popularidade de Lula tenha sido erodida pelos escândalos de corrupção em que esteve envolvido (uma das justificações para a sua não-eleição à primeira volta), o gráfico acima é arrebatador. Mas mais que um valor absoluto de apoio, deve ser lido como um valor relativo – entre um candidato que melhorou as condições materiais, sociais e culturais de milhões e outro que é, sem margem para dúvidas, o pior Presidente do Brasil desde que a ditadura militar findou. Também esta afirmação é prepotente. Vejamos a sua justificação.

Se não bastarem os casos da hidroxicloroquina, dos milhares de mortos da pandemia, do desflorestamento acelerado da Amazónia e do número chocante de pobres e famintos, para demonstrar que Bolsonaro é o pior Presidente da democracia brasileira, então creio que o seguinte caso é suficientemente explícito: Bolsonaro tentou activamente interferir nas sondagens eleitorais (aquelas que, curiosamente, lhe davam um mau resultado). Ainda estávamos em pleno rescaldo da primeira volta das eleições e já o congresso brasileiro (apoiado por Jair Bolsonaro) anunciava a intenção de criminalizar e prender “responsáveis que publiquem sondagens a menos de duas semanas das eleições cujos números tenham uma diferença superior à da margem de erro face aos resultados oficiais". Pode até parecer uma piada ou um caso de menor relevância face aos previamente descritos, mas infelizmente não o é. A tentativa de controlo do aparelho eleitoral, neste caso pela formação da opinião pública pelas sondagens, é uma machadada num pilar fulcral da democracia brasileira e uma interferência esmagadora nas instituições que regem o contrato social.

Não que restassem grandes dúvidas quanto à natureza do ainda Presidente – todos sabemos que tem, por exemplo, um fascínio pela ditadura militar –, mas seria de esperar que os seus intuitos perniciosos não fossem tão declarados. A omissão de intenções negativas para a maioria da população é o mais elementar engenho político. No entanto, nem isso Bolsonaro soube fazer. Sapiência não é mesmo um adjetivo que possa qualificar o actual Presidente – quiçá energúmeno seja mais adequado.

Deixemos claro: por muitos escândalos e negócios obscuros em que tenha participado, Lula da Silva nunca esteve próximo deste tipo de acções. Já com Jair Bolsonaro ao leme, a democracia brasileira está a navegar em direcção a águas perigosas. Nunca esteve tão perto de colossos do liberalismo como a Hungria e a Turquia (de compinchas do actual Presidente, como Viktor Orbán).

Resumindo: de um lado, Jair Bolsonaro, rumo à intolerância, miséria e iliberalismo. Do outro, Lula da Silva rumo à igualdade, à prosperidade e à democracia plena. É por isso que a escolha que os brasileiros terão de fazer no próximo domingo só pode ser descrita como simples.

Ainda que Lula não seja o comandante ideal, e que tenha alguns esqueletos no armário, é imensamente melhor que Bolsonaro. A escolha – entre um candidato que quer fazer a desforra com o seu passado e outro que é boçal, ignóbil, racista e classista – é na realidade uma não-escolha, por ser tão óbvia. Apesar das trevas pelas quais o Brasil está neste momento a passar, segunda-feira será um novo dia, como diria Chico Buarque:

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar, vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir, que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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