Après nous, le déluge
Après moi, le déluge
(“depois de mim, o dilúvio”) e a sua variação, título deste texto, são frases atribuídas a Luís XV de França. Tornaram-se muito notórias, tanto enquanto mantras niilistas como enquanto sinais da perversão aristocrática que anunciavam a vindoura Revolução Francesa. Porém, hoje, começo por usá-las para falar de dilúvios literais. Afinal de contas, recentemente, muitos de nós tiveram oportunidade de aprender o que é um “rio atmosférico”.
Em boa verdade, trata-se de uma frase que poderia ter sido proferida por algum tipo de personificação da seca que vivemos ao longo deste ano, em Portugal e na Europa (ao que tudo indica, a pior dos últimos 500 anos): logo depois dela, tivemos de enfrentar chuvas e ventos tão fortes que causaram avisos vermelhos e inundações. Ainda que tenham ajudado a lidar com a falta de água, foram eventos demasiado intensos. Poderíamos desprezá-los como ocorrências circunstanciais, como mera coincidência o facto de termos oscilado entre dois fenómenos climáticos tão extremos. No entanto, a nossa experiência dos últimos anos e a evidência científica apontam o contrário: falamos de uma tendência, bem visível e documentada, indissociável da emergência climática que vivemos.
Durante anos houve quem pensasse que seria a chegada destes eventos que mudaria a perceção das pessoas: “hoje não fazemos o suficiente, mas, quando a situação piorar, a sociedade e, acima de tudo, os atores políticos vão acordar e inverter o rumo”. Contudo, talvez porque as mudanças não foram repentinas, antes se intensificaram progressivamente, seguimos exatamente o mesmo caminho que vínhamos seguindo, feitos sapos em água a ferver – de facto, a ferver. As consequências da nossa leviandade enquanto espécie, há tanto anunciadas, já cá estão, são as descritas, e, daqui, só se agravarão.
Neste momento do texto, escolho regressar ao título: “depois de nós, o dilúvio”. A interpretação mais intuitiva da frase é a que descreve Luís XV presumindo que, depois do seu reinado, a França cairia em colapso. Aqui, o paralelismo é simples: depois da nossa geração, também se adivinha a ruína. No passado, já mencionei o perturbante relatório do IPCC que António Guterres apelidou de “código vermelho para a Humanidade” e expliquei que, então, se previa um aumento médio de temperatura de cerca de 2,7 °C até ao fim do século. Falamos de um cenário com o qual, se não nós mesmos, os nossos filhos já terão certamente de lidar. Implica passarmos o “ponto de não retorno” no espaço de uma geração e causar mudanças irreversíveis ao nosso planeta que muito provavelmente o acabarão por tornar incompatível com a vida humana. Que não restem quaisquer dúvidas: esta já é a maior batalha das nossas vidas, a batalha pela própria sobrevivência da espécie humana.
Sejamos explícitos: se insistirmos no nosso rumo atual, “o dilúvio” é mesmo o único futuro que nos resta. Para ajudar a ilustrar esta afirmação, sugiro olhar ao interessante (e útil) conceito de “fronteiras planetárias”. São nove limites em aspetos quantificáveis, referentes a sistemas essenciais à manutenção da vida humana. Se ultrapassados, significam um aumento colossal do risco para a nossa espécie, pontos em que as mudanças passam a ser imprevisíveis, podendo ser abruptas e, acima de tudo, irreversíveis. Já ultrapassamos limites em 6 destes aspetos, a saber: na disponibilidade de água, nos ciclos de recarga de azoto e fósforo, na introdução de novas entidades no nosso ecossistema, nas alterações ao uso do solo, na perda de biodiversidade e na emissão de gases de efeito de estufa. É já incerto que algum destes efeitos seja reversível – são riscos altíssimos para o clima, para o nosso ecossistema, para as espécies que nos sustentam e para a água potável de que necessitamos para viver.
Peço, então, que voltemos a olhar para o título do texto. Como disse, muitos interpretam-no como um mantra do niilismo. Luís XV poderia querer dizer a Madame de Pompadour, sua cortesã: “depois de nós, até pode vir o dilúvio”. Uma indiferença com o estado do mundo depois das suas vidas. Esta e outras variedades de niilismo também têm impacto na motivação da sociedade para alterar o nosso trajeto, no que diz respeito ao meio ambiente. Expressões como “já não há volta a dar”, “não me vai afetar pessoalmente” ou “sozinho/a não consigo mudar nada” são sintomas de diferentes formas desta condição. Por essa razão, acho importante ressalvar que não pretendo ser fatalista: ainda podemos parar, pelo menos, algumas destas mudanças e salvar a Humanidade. Se destaco a dimensão das consequências ambientais da ação humana, é por querer sublinhar que são necessárias intervenções profundas e urgentes, não por achar que estamos condenados ao apocalipse.
Quanto aos efeitos das ações individuais, é certo que, por si só, são manifestamente insuficientes. Não vamos salvar o planeta apenas gastando menos água nas nossas casas, optando por meios de transporte mais sustentáveis ou reciclando frequentemente. São necessárias transformações extensas da sociedade e do nosso sistema socioeconómico, decisões que só se podem tomar a nível dos nossos mais altos órgãos de governação. No entanto, olhando a todo o coletivo somado, as mudanças comportamentais dos indivíduos têm uma influência maior do que imaginamos e, acima de tudo, contribuem para uma renovação da cultura e das mentalidades que será essencial à transição societal para um modelo mais verde. Ademais, temos à nossa disposição ferramentas bem mais poderosas do que recipientes tricolores para facilitar a reciclagem: a nossa voz e o nosso voto. Através delas, cada um de nós pode ter um papel importante na definição das políticas ambientais do futuro e contribuir para salvar a nossa espécie.
Para concluir, remeto uma última vez para a frase do título. Referi acima que é vista por alguns historiadores como sinal da decadência da aristocracia que viria a redundar na Revolução Francesa – em si, um dilúvio para a monarquia francesa da época, 15 anos depois do reinado de Luís XV. De igual forma, a decadência da nossa sociedade trouxe-nos a um momento muito precário. Não nos podemos dar ao luxo de esperar 15 anos, mas espero que os fenómenos climáticos extremos dos últimos tempos sejam, finalmente, o ímpeto de que necessitávamos, também eles prenúncio de uma revolução nossa – uma enchente de políticas ambientais e reformas estruturais que entreguem um planeta habitável aos que virão depois de nós.