Por um Estado verdadeiramente laico


Durante a semana passada, ocorreu, provavelmente, o incidente que mais desgastou a imagem do atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa: quando questionado acerca das 424 queixas recebidas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja, respondeu dizendo que não se tratava de um número “particularmente elevado”. As declarações são obviamente chocantes – uma só queixa já seria um número demasiado elevado.

Marcelo Rebelo de Sousa tentou minimizar os estragos, sugerindo uma interpretação para as suas declarações. Esclareceu que 424 queixas seriam, afinal, menos do que as que esperaria, acreditando que possam ter ocorrido mais abusos, especialmente olhando ao peso da Igreja no nosso país e ao número de queixas noutros países. No entanto, esta justificação parece não ter tido uma influência muito significativa na opinião pública e parece pouco sincera, à sombra do que já começa a ser um historial de defesa sistemática da Igreja Católica por Marcelo Rebelo de Sousa – recorde-se o caso recente do telefonema ao Bispo José Ornelas, que o Presidente parece ter avisado acerca de uma investigação criminal pela qual é visado.

À esquerda, fotografia de Marcelo Rebelo de Sousa; à direita, fotografia de D. José Ornelas

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o Bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas Carvalho, foram protagonistas de um telefonema polémico recentemente

Fontes: Agência Lusa, CC BY 3.0; romanuspontifex, CC BY-SA 2.0; via Wikimedia Commons

Falamos, portanto, de uma instituição na qual deverão haver bem mais do que 424 casos de abusos sexuais de menores, segundo o nosso chefe de Estado. Uma instituição onde persiste uma cultura de encobrimento destes casos e de impedimento da devida ação da Justiça. No entanto, esse mesmo chefe de Estado insiste em agir no sentido de defender esta instituição. Tal defesa só se consegue explicar na totalidade se abordarmos a cultura de promiscuidade entre religião e política que há muito existe na nossa República.

O processo de laicização do Estado aprofundado aquando da Primeira República foi uma das maiores heranças que esse regime nos deixou. Tornou-se bastante claro que o secularismo era um dos pilares da República e da Democracia, por contraste com a monarquia, em que líderes incontestáveis maioritariamente sustentaram o seu poder em alguma forma de indicação divina.

Não será, portanto, surpreendente que este laicismo tenha sido um dos principais fundamentos arrasados aquando do Estado Novo. No seu lema herdado do fascismo de Mussolini, “Deus, Pátria e Família”, o salazarismo volta a colocar a religião como primeiro e maior pilar da sociedade. É durante este regime ditatorial que a Igreja Católica recupera muita da influência perdida no início do século XX – por exemplo, torna-se isenta do pagamento de impostos e ganha um papel mais preponderante na educação. Por mais de 40 anos, o sistema instalado beneficiou a Igreja e, em troca, a Igreja foi ferramenta de propaganda do governo e, através do direito divino, ajudou a legitimar Salazar, sendo fulcral em mantê-lo no poder durante tanto tempo.

Desde a queda do Estado Novo, muito do processo republicano de laicização do Estado foi retomado, mas algumas das fraturas no secularismo, pilar da democracia, não puderam ainda ser reparadas. A Concordata de 2004 veio substituir a de 1940, que tinha estabelecido muitas das concessões feitas pelo Estado Novo à Santa Sé, mas manteve fundamentalmente os mesmos princípios. Ademais, para recuperar os exemplos anteriores, as entidades religiosas continuam isentas de muitos impostos e a Igreja Católica, em particular, continua a ser extremamente influente na educação, entre múltiplos colégios detidos por dioceses ou a própria Universidade Católica – meios educativos frequentemente reservados às classes mais privilegiadas e que produzem lucros grotescos.

A mescla entre religião e propaganda política também não foi completamente dissolvida desde 1974. Desacelerou, especialmente nos anos que se seguiram à Revolução de Abril, mas tem lenta e progressivamente vindo a ser reintroduzida. O primeiro exemplo que destacarei foi a campanha para as eleições presidenciais de 1996: o ateísmo de Jorge Sampaio foi várias vezes utilizado como argumento contra ele pelos partidários de Cavaco Silva e até pelo próprio num discurso. Desde o fim do salazarismo, a religiosidade de eventuais Chefe de Estado nunca tinha ganho tanto relevo no discurso. Diga-se que é extremamente preocupante que haja fatias apreciáveis da população que acreditem que as crenças religiosas (ou falta delas) de um político são relevantes na sua ponderação.

Recentemente, vimos ainda um fenómeno mais inquietante, com André Ventura, uma figura que tem ganho algum relevo eleitoral, a tentar pintar-se como alguma espécie de enviado de Deus, à semelhança dos déspotas dos tempos mais negros da nossa História, e a recuperar o bafiento lema fascista usado durante o salazarismo, que coloca a religião à cabeça.

Parece claro que ainda temos muito trabalho pela frente para que religião e política sejam totalmente independentes, como deveriam ser. A escorregadela de Marcelo Rebelo de Sousa é apenas a mais recente de uma série de evidências que apontam nesse sentido. No entanto, pinta um quadro negro: a maior figura do Estado que sistematicamente tem agido e falado no sentido de defender o privilégio da Igreja enquanto instituição. Enquanto este tipo de atitudes continuar, esta entidade terá carta branca para manter a mesma postura de impunidade perante a lei e para continuar a tentar interferir na organização fundamental da nossa sociedade, ao invés de se cingir ao seu legítimo papel na espiritualidade individual de cada cidadão, como seria expectável.

Em 1910, os pais da nossa República já sabiam que o laicismo era peça fundamental para uma sociedade e um sistema político modernos. Ainda que 112 possa também não parecer um número “particularmente elevado” ao Presidente da República, 112 anos são muito significativos, em termos civilizacionais. É tempo suficiente para aprendermos a dar razão aos republicanos de 1910 e prosseguirmos o seu trabalho.


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