Soluções do século XIX
Inúmeros desafios esperam-nos ao longo deste século. Do ambiente à economia, da ciência à saúde, da segurança à democracia, são múltiplas as frentes que necessitam da nossa atenção. Muitos destes problemas já a recebem. Outros, nem tanto. Infelizmente, uma coisa é transversal a todos: a esmagadora maioria das soluções apresentadas para os resolver são extremamente conservadoras. Isto é, em vez de procurar solucionar os problemas à luz do século XXI, por forma a responder aos desafios de forma eficaz, os dirigentes e intelectuais mais notórios socorrem-se de conceitos, teorias e modelos manifestamente ultrapassados – do século XIX, diga-se. É o caso da economia, com as teorias neoclássicas. É o caso do ambiente com o ambientalismo de mercado. É o caso da segurança com o isolacionismo. Urge, pela gravidade dos problemas referidos, a aplicação de soluções e ideias heterodoxas que efectivamente projectem o nosso planeta para outro estado de desenvolvimento.
Os problemas supra-citados já mereceram, noutros textos, a atenção dos autores deste blogue. Por isso, o problema que vos trago hoje não é nenhum dos que já foi referido. Todavia, não é menos importante que eles e, infelizmente, padece da mesma condição que os demais: ortodoxia e pensamento limitado. Refiro-me ao envelhecimento.
O envelhecimento era uma não-questão até há um século atrás, algo perfeitamente compreensível quando a idade média não ultrapassa os 30 anos. Naturalmente, com esse tipo de pirâmide demográfica, o problema da senioridade não se coloca: levantam-se outros, como a juventude excessiva ou a mortalidade elevada. Hoje, o envelhecimento é um problema quase exclusivamente ocidental. Por outras palavras: existem regiões do planeta completamente envelhecidas e outras cuja população média é extremamente jovem, como era antes do século XIX. Entender as razões que levam a diferentes pirâmides demográficas é interessante, mas olhemos para a nossa realidade concreta.
As sociedades europeias possuem uma população muito envelhecida: mais de um quinto da população europeia está acima de 65 anos. Portugal, não surpreendentemente, encontra-se no top 5 dos países mais envelhecidos. A Pordata diz-nos que existem actualmente 182 idosos para cada 100 jovens, o que perfaz um índice de envelhecimento esmagador e insustentável para um pequeno país periférico.
Algumas causas que levam a este indicador assustador não são, per se, negativas. Uma maior esperança de vida à nascença, cuidados de saúde mais eficazes e generalizados, emancipação feminina ou protecção por parte das instituições são motores que devemos elogiar e agradecer. Contudo, algumas são: uma natalidade baixíssima, um saldo migratório acentuadamente negativo e a diminuição de oportunidades viáveis para jovens.

O tempo a ordernar a velha a destruir a beleza
Fonte: Pompeo Girolamo Battoni, tela em óleo, CC0, via Wikimedia Commons
Este problema, tal como os inicialmente referidos, não sofre de fraca atenção. A Comissão Europeia (CE) definiu a crise demográfica como uma das prioridades para o quinquénio de 2019-2024 (recomendo vivamente a leitura do resumo em hiperligação). O problema deste problema, se me é permitido o pleonasmo, é a tacanhez de pensamento quanto às soluções propostas. Prevejo, por isso, que seja um desafio que se estenda ao longo do século, dada a risível eficácia das medidas apresentadas e, naturalmente, a complexidade do assunto.
É curioso (e triste) que, num resumo tão extenso como o citado atrás, não se tenha referido uma das melhores soluções para o problema do envelhecimento. É, quiçá, a mais exequível, eficaz e expedita: promover um fluxo positivo de migrantes de zonas geograficamente jovens. Talvez a teoria da Grande Substituição esteja no subconsciente de alguns decisores políticos. Faço minhas as palavras do meu colega de blogue, José Alves Amaro: “é [uma teoria] tão absurda e profundamente abjeta que me recuso a descrevê-la em detalhe e a correr o risco de a propagar ainda mais".
O fluxo positivo de migrantes é possivelmente uma das melhores soluções, devido à sua rápida implementação, mas não é, de todo, a única: estímulos à natalidade, como a promoção do tempo de lazer (pela diminuição de horários produtivos), creches gratuitas ou maior compatibilidade entre vida pessoal e profissional, são ideias que todas as semanas surgem nos noticiários, mas que nunca avançam. A inversão da pirâmide demográfica é essencial, mas, como veremos já de seguida, não é a prioridade europeia.
Uma leitura atenta do documento da CE mostra que imperam respostas inadequadas (ou inexistentes) e que não tentam resolver o envelhecimento, mas antes aproveitar-se do mesmo. Segundo a CE, os Estados devem “trazer mais pessoas para o mercado laboral, permitindo o prolongamento da sua carreira contributiva, e aumentar a sua produtividade, por forma a compensar a diminuição da população activa". Numa altura em que tanto se fala da automação e da redução da mão de obra necessária, continuamos com a típica resposta à la século XIX: aumentar a idade legal da reforma de modo a anular o efeito da diminuição da população activa. Não consigo conceber maior artifício ou patranha do que esta. Digamo-lo claramente: é uma falácia de dispersão. Esperava-se muito mais da maior instituição europeia. Para além de não solucionar, de todo, o problema em mãos, é uma proposta que se baseia em explorar os mais idosos da sociedade – tudo isto para manter um rumo que é económica, social e ambientalmente insustentável. Ao invés de utilizar este desafio como um motor para um novo modelo societal, apenas mantém o status quo, tão nefasto para a sociedade e para o planeta.
Desgraçadamente, já vários países aproveitaram-se desta proposta da CE: em França, Macron pretende aumentar a idade da reforma para os 65 anos. Noutros, a idade legal já aumentou e prevê-se que mais países se juntem a este movimento. Contudo, engane-se o leitor que ache que este pensamento ficou em Bruxelas ou Paris. Por cá, as mesmas propostas começam a surgir de forma mais regular. O presidente da Associação Portuguesa de Demografia, Paulo Machado, confessou ao Público que “não podemos continuar a pensar que aos 66 ou 67 anos de idade estamos em condições de deixar de ser produtivos".
A solução apresentada é exactamente a mesma que a da Comissão Europeia – short sighted. Para além das pessoas chegarem às idades supra-referidas muito desgastadas, o que se reflecte naturalmente na sua produtividade, o encurtar do tempo de vida saudável após a reforma só pode advir de ingratidão para carreiras contributivas tão longas. Porque não, antes de sequer pensarmos em aumentar a idade da reforma, estudarmos um sistema de reforma parcial a partir de uma determinada idade? Por opção e acordo com o empregador, o trabalhador acima de uma determinada idade poderia optar por um sistema de trabalho parcial, com uma redução de salário não totalmente equivalente, o que estimularia não só a criação de emprego, a solidariedade intergeracional, mas também uma melhor transição para a senioridade.
Primeiramente, devemos sair da falácia da Comissão Europeia: temos de recentrar o debate nas propostas que efectivamente resolvem o problema do envelhecimento. Não faltam ideias inovadoras com um potencial extraordinário. O que está omisso é a vontade e coragem política necessária. Creio que teremos de continuar, até à nossa reforma, para mim talvez aos 80, a debater-nos por um futuro mais igualitário, solidário e intergeracional. E do século XXI, esperemos.
O autor não segue o novo acordo ortográfico