Midterms I: O quebra-mar


No passado dia 8 de Novembro, decorreram as eleições intercalares nos Estados Unidos: os norte-americanos foram às urnas para decidir a composição do novo Congresso e de diversos órgãos executivos, legislativos e judiciais menores, assim como alterações a leis estaduais muito diversas. Foram a votos, entre outros, 35 lugares no Senado (mais de um terço da câmara alta do Congresso), a totalidade da Câmara dos Representantes (câmara baixa) e a governação de 36 Estados.

Antes das eleições, a expectativa – muitas vezes suportada pelas sondagens – era de uma grande vitória para os Republicanos: é habitual que o partido do Presidente em funções saia prejudicado em eleições intercalares e a atual conjuntura económica, que pesa nas taxas de aprovação de Biden, não facilitaria a tarefa para os Democratas. Falava-se, então, de uma red wave, uma “onda vermelha” que seria a resposta dos Republicanos a várias eleições menos conseguidas e um novo ímpeto para o partido de Trump. Analisemos então se as expectativas pré-eleitorais tinham fundamento e tentemos compreender ao certo qual foi, afinal, a dimensão desta onda.

Gráfico com os resultados das eleições intercalares nos Estados Unidos, para a Câmara dos Representantes, Senado e número de Governadores. A Câmara dos Representantes mostra 218 (+4) contra 210 (+3), a favor dos Republicanos. O Senado mostra 48+2 (2 independentes que votam com os Democratas) contra 49, a favor dos Democratas. Um lugar do Senado está a cinzento, por atribuir devido à segunda volta na Geórgia. O número de Governadores mostra 25 (+1) contra 24, a favor dos Republicanos

Resultados das eleições intercalares, à data deste artigo. Destaque para o número de representantes já eleitos e para o número de contagens em que cada partido leva vantagem

Dados: BBC, conforme disponível a 17 de Novembro de 2022, pelas 19h37 GMT+0 (arquivado)

Como é já habitual nos Estados Unidos, a contagem dos votos em diversas áreas está a ser demorada e muitos resultados ainda não são definitivos. Assim, basearei esta análise nas projeções que existem à data da escrita deste artigo, que, dado que a contagem vai já muito avançada, estarão certamente muito próximas do resultado final.

Numa eleição muito disputada, os Republicanos, como esperado, recuperaram o controlo da Câmara dos Representantes. No entanto, fizeram-no por uma margem muito curta. Olhando ao estado atual da contagem, aponto para entre 220 e 223 congressistas republicanos, de um total de 435 (a maioria atingiu-se aos 218). Comparando com os 235 que os Democratas conquistaram em 2018, nas eleições intercalares durante a presidência Trump, percebemos que, neste contexto eleitoral, se trata de uma vitória pequena para os conservadores.

No Senado, o panorama à direita agrava-se. Contrariamente a todas as previsões, os Democratas, no mínimo, manterão a maioria que detêm desde 2020 (50 senadores, com a Vice-Presidente a desfazer o empate de 50-50). No início de Dezembro, com a realização de uma segunda volta na Geórgia, podem até aumentar essa maioria para 51 senadores. Não é, de todo, irrealista que o façam: em 2020, também precisaram de ir à segunda volta, mas conseguiram ambos os senadores eleitos pela Geórgia.

Finalmente, em eleições para Governadores, os Democratas passarão, provavelmente, a controlar mais dois Estados, diminuindo a vantagem Republicana neste aspeto, de 28-22 para 26-24.

Em geral, o panorama fica claro: os Democratas perdem a Câmara dos Representantes, mas têm muitas vitórias inesperadas e o resultado é embaraçoso para os Republicanos que, olhando à tradição eleitoral norte-americana, esperariam um resultado muito mais expressivo a seu favor.

Na verdade, mesmo com a perda do controlo da câmara baixa do Congresso, os Democratas conseguiram, provavelmente, o melhor resultado eleitoral em intercalares desde 2002, quando os efeitos do 11 de Setembro eram ainda recentes e fizeram com que os norte-americanos se unissem em torno do Presidente George W. Bush. Desde então, os Republicanos perderam 30 congressistas nas intercalares do segundo mandato de Bush e 41 nas intercalares do mandato único de Trump, e os Democratas perderam, respetivamente, 64 e 13 congressistas nas primeiras e segundas intercalares da presidência Obama. Se a previsão que fiz acima estiver correta, os Democratas perderão apenas 5 a 8 congressistas com Biden ao leme.

Não será absurdo dizer que a “onda vermelha” prevista terá encontrado um firme quebra-mar, que não a deixou passar da altura dos tornozelos e que será, postulo, obra dos próprios Republicanos e resultado de diversas falhas estruturais na sua estratégia dos últimos anos.

O maior desses erros foi a aproximação à extrema-direita. A contínua consagração de Trump como cabecilha do partido, mesmo após a sua derrota de 2020, afugentou todo o eleitorado que estava cansado do seu populismo e que ainda tinha frescos na memória todos os escândalos da presidência do ex-apresentador de reality shows e a sua má gestão da pandemia de COVID-19. Com Biden (para todos os efeitos, um moderado) a Presidente, não foi difícil ao partido Democrata segurar muito do eleitorado dito “centrista”, tradicionalmente indeciso entre os dois partidos.

Associada à insistência dos Republicanos em Trump, veio a adoção de teorias da conspiração por algumas das figuras do partido com maior visibilidade. A de maior relevo será a teoria da “fraude eleitoral”, que culminou numa tentativa de supressão da democracia, aquando da invasão do Capitólio a 6 de Janeiro de 2021. Os políticos republicanos que adotaram esta retórica, por vezes denominados de “negacionistas eleitorais” e que receberam amplamente apoios de Donald Trump, saíram derrotados em quase todos os confrontos minimamente disputados nestas eleições e tiveram prestações significativamente piores do que os restantes Republicanos. Ao que parece, numa democracia, os eleitores preferem dar os seus votos a pessoas que, de facto, respeitam esses mesmos votos. Quem diria?

Fotografia de Donald Trump com um ar aborrecido

Donald Trump viu muitos dos candidatos que apoiou sofrerem derrotas nas suas corridas eleitorais

Fonte: Gage Skidmore, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons

Podemos ainda associar a este deslize para a extrema-direita um maior fervor na defesa de políticas radicais pelo partido Republicano. Aqui, o exemplo paradigmático será a muito noticiada revogação da decisão “Roe v. Wade” pelo Supremo Tribunal, com larga maioria de juízes nomeados pelos Republicanos. O fim do direito ao aborto é uma das tradicionais bandeiras dos Republicanos, mas estes confrontam-se agora com a impopularidade da sua posição. Desde a decisão original, nos anos 70, o tema tornou-se cada vez menos divisivo e a opinião adotada pelos Republicanos é cada vez mais considerada como ultraconservadora pela generalidade do eleitorado, agora maioritariamente a favor do direito de escolha pelas mulheres sobre o que acontece ao seu próprio corpo. Nestas eleições, vemos também evidência neste sentido: em cinco propostas legislativas sobre o aborto (três no sentido de incluir o direito ao aborto em constituições estaduais e duas no sentido de proibir o aborto), todas resultaram em votações no sentido pró-aborto, mesmo em Estados vistos como mais conservadores.

A opção sistemática dos Republicanos por propostas ultraconservadoras alienou, em grande parte, o segmento mais jovem dos votantes. Percebemos agora que esta geração de norte-americanos está extremamente mobilizada e poderá ser uma das mais progressistas de sempre: tiveram taxas de participação recorde nestas eleições (e nas de 2020) e tendem a votar quase duas vezes mais nos Democratas do que nos Republicanos.

Ficam, assim, exploradas algumas das maiores razões por trás do resultado inesperado das eleições intercalares nos Estados Unidos, quase sempre associadas a erros de cálculo pelos Republicanos. Importará agora compreender as implicações deste resultado para a política norte-americana (e, inevitavelmente, para a política mundial). No entanto, porque este texto já vai longo, terei alguma compaixão com o leitor e guardarei essa análise para um outro texto, a publicar já amanhã. Vemo-nos lá.

[Nota do autor, 18 de Novembro de 2022: a continuação desta análise já se encontra disponível.]


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