Midterms II: A incerteza
Analisei ontem os resultados eleitorais das eleições intercalares norte-americanas. Destaquei que o resultado foi extremamente desapontante para os Republicanos, ainda que possam cantar vitória em alguns pontos específicos e que tenham conquistado a maioria na Câmara dos Representantes. A conclusão a que cheguei é que essa prestação abaixo das expectativas é quase inteiramente culpa do próprio partido Republicano, cuja estratégia de aproximação à extrema-direita resultou em medidas e propostas muito pouco populares, como a revogação pelo Supremo Tribunal da decisão que sustentava o direito ao aborto. Ao longo desta transformação ideológica, os Republicanos perderam a capacidade de atrair os eleitores ditos “centristas” e, em particular, a geração mais jovem, que vota agora, de forma avassaladora, nos Democratas.
Interpretados os resultados, é agora essencial tentarmos perceber as implicações destes para o futuro próximo da política norte-americana. Até porque, gostemos ou não, essas implicações surtirão efeitos pelo mundo todo e, em especial, cá na Europa.
Já estamos a ver consequências destas eleições no partido Republicano, que, provavelmente, tentará mudar de rumo (mesmo que só de forma ligeira). Não o fazem por razões morais, como seria desejável, mas muitas figuras republicanas percebem agora que a atual estratégia não é sustentável e preparam-se para abandonar Trump – a atribuição de culpas foi quase imediata e a designação do ex-presidente como bode expiatório parece ser ampla. No entanto, algo deve ficar claro: afastam-se do “trumpismo”, mas não do extremismo. O putativo candidato republicano mais falado para as próximas eleições presidenciais é Ron DeSantis, governador da Flórida, que, enquanto político de carreira, é mais ponderado na retórica, mas dificilmente poderá ser considerado menos extremista do que Donald Trump em muitas matérias – já contribuiu para um tremendo retrocesso no sistema educativo da Flórida.
Contudo, conforme nos habituou, Trump não baixará os braços com tanta facilidade. Para se adiantar à oposição interna (e para poder apelidar de “perseguição política” os diversos processos judiciais de que será alvo), já anunciou que será candidato nas primárias republicanas às próximas presidenciais. Conhecendo o seu estilo, a luta será presumivelmente aguerrida e repleta de insultos ao seu maior adversário. Esses ataques, aliás, já começaram.
Mesmo que DeSantis ganhe as primárias, dificilmente conseguirá mobilizar o eleitorado mais leal a Trump. O ex-presidente poderá nem reconhecer esse resultado das primárias, à semelhança do que fez nas últimas presidenciais. Na eventualidade de uma derrota de Trump, muitos colocam ainda a hipótese de este se candidatar às presidenciais como independente ou por um terceiro partido, dividindo o voto à direita. Nessa circunstância, seria virtualmente certo que o candidato Democrata fosse eleito Presidente.
É impossível, também, descartar a possibilidade de uma vitória de Trump nas primárias republicanas. Se se verificar, o partido Republicano continuará dividido e será difícil que muitas das suas alas mais tradicionais, que agora atacam Trump e o responsabilizam pelo falhanço nestas intercalares, se mobilizem intensamente para votar nele.
Em suma, a candidatura de Trump às primárias abre um leque de cenários negros para os Republicanos, nos quais a vitória do candidato democrata em 2024 é extremamente provável. Estou convicto de que esse candidato será certamente Joe Biden, ainda que nem isso seja ainda consensual nos EUA. Atentemos à situação do atual Presidente e do seu partido.
Notei, no artigo de ontem, que o resultado nestas eleições intercalares foi o melhor para o partido do Presidente em funções desde 2002. Mais impressionante ainda foi o facto de os Democratas conseguirem este resultado perante um contexto económico pouco favorável, com taxas de inflação altas e incerteza nos mercados. Ainda que este panorama seja maioritariamente causado por fatores externos, a economia é sempre um dos aspetos com mais peso na avaliação pelos norte-americanos dos seus Presidentes. Biden não é exceção: tem taxas de aprovação manifestamente baixas. No entanto, em resultados eleitorais, continua a persistir. Na História norte-americana recente, sempre que a conjuntura económica piorou, o partido do Presidente pagou por isso nas urnas. Que o diga Obama, que viu os Democratas perderem 64 congressistas em 2010, ainda no rescaldo da crise financeira de 2008. Porém, com Biden, os Democratas conseguiram evitar um descalabro eleitoral.
Em 2024, se formos minimamente otimistas, esperamos que os fatores externos que prejudicaram a economia tenham quase desaparecido. Em particular, que a invasão russa da Ucrânia tenha sido travada, contribuindo para o abrandamento da inflação e, consequentemente, para que o custo de vida pare de aumentar a um ritmo incomportável. Assim, Biden poderá chegar ao fim deste seu primeiro mandato com um cenário económico consideravelmente mais positivo e com uma tarefa mais fácil para as eleições presidenciais.
À possível mudança da conjuntura económica, acresce a eficácia legislativa da atual Presidência como ponto a favor de Biden. No primeiro dia da sua presidência, os EUA voltaram imediatamente a integrar o Acordo de Paris, reafirmando os compromissos do país em relação ao combate contra as alterações climáticas. Ainda no seguimento da pandemia de COVID-19, foi aprovado um pacote de estímulos que acelerou bastante a recuperação económica e o ritmo de distribuição de vacinas disparou – estima-se que tenham sido salvas centenas de milhares de vidas. Entrou em ação um plano de investimento que contribui para a muito necessária manutenção e modernização da infraestrutura norte-americana, no qual devo destacar a incidência sobre a transição para energias verdes e a expansão da primitiva rede ferroviária dos EUA. Também há agora um esforço para a renovação da indústria norte-americana e, em especial, para a produção de semicondutores. Por último, foi recentemente assinado o Ato para a Redução da Inflação, com especial foco na saúde e no clima. Poderá contribuir, por exemplo, para a redução do custo dos fármacos e também colocará os EUA na rota necessária para atingirem os objetivos do Acordo de Paris. É, aliás, o maior investimento alguma vez feito naquele país para combater as alterações climáticas. Discretamente, Biden tornou-se num presidente extremamente impactante e os efeitos deste frenesim legislativo começarão indubitavelmente a fazer-se sentir antes de 2024.
Entre a prova de robustez dada nestas eleições intercalares – um resultado que muito se deve ao posicionamento ideológico do Presidente – e o sucesso da sua presidência até ao momento, Biden será, provavelmente, um candidato fortíssimo para as presidenciais de 2024. Assim, caso Biden se queira candidatar à reeleição, é improvável que alguma figura credível dos Democratas tente disputar a sua nomeação em primárias, sabendo que conseguiriam apenas acrescentar uma derrota pesada ao seu currículo político.
Com Biden numa posição forte e um partido Republicano dividido, os Democratas ganham agora novo alento para as presidenciais de 2024. Porém, restam dois anos até essas eleições e ainda falta perceber como serão geridos os EUA até lá. A perda de maioria na Câmara dos Representantes fará com que os Democratas deixem de ter a mesma eficácia no processo legislativo que tiveram nestes dois anos. O Senado, de maioria democrata, certamente travará qualquer ímpeto menos moderado dos congressistas republicanos. Será, então, de esperar um certo travão na política americana.
Contudo, o eleitorado já puniu o maior extremismo do partido Republicano e muitos dos seus congressistas mais moderados podem ter interesse em reconstruir entendimentos entre ambos os lados da Câmara – devido à curta maioria republicana, esses congressistas não terão de ser muito numerosos. Assim, pode haver espaço a que prossigam algumas das propostas mais prementes, com acordos bipartidários. O que deverá, quase certamente, ficar no papel são algumas das propostas de maior destaque dos Democratas, como a legalização formal do aborto ou uma – muito necessária – reforma eleitoral.
Os norte-americanos saem, portanto, destas eleições intercalares com muitas incertezas e com muitas mudanças no horizonte. Todavia, algumas coisas ficam claras: o populismo e o extremismo saíram derrotados, os EUA estão cansados da retórica anti-democrática das legiões mais leais a Trump e o partido Republicano está finalmente a pagar pelos seus erros. Cada vez mais, parecem-se estar a escrever os últimos parágrafos de um capítulo negro da História.