Crónica de uma morte anunciada: o outro lado
Há cerca de um ano, escrevi neste espaço que o CDS estaria condenado à morte, tal como Santiago Nasar, protagonista da fabulosa obra “Crónica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia Marquez. Não me enganei: nas últimas eleições legislativas, o partido, então liderado por Francisco Rodrigues dos Santos, não elegeu nenhum deputado. Pela primeira vez este partido, representado desde a primeira legislatura portuguesa, ficava de fora do parlamento. Não se tratava de um mero partido “histórico”, que teria sucumbido à passagem do tempo – o CDS fazia parte do chamado “arco da governação”, esteve presente em inúmeros governos de coligação recentes e produziu quadros que ainda hoje marcam a política portuguesa. A primeira ilação que podemos tirar deste acontecimento é que nenhum partido está imune ao perecimento. Parece uma lapalissada, dado o número de grandes partidos europeus que sucumbiram, pelas mais diversas razões. Ainda assim, foi a primeira vez que tal aconteceu no nosso país.
A decadência do CDS, foi, grosso modo, esmiuçada no meu artigo supra-citado e, por isso, não me irei alongar mais sobre esse partido. Hoje trago-vos uma crónica de uma morte anunciada, mas de outro partido, sensivelmente na mesma situação que o CDS esteve há um ano. Não é difícil inferir que esse partido é o Partido Comunista Português (PCP). Caso o leitor não se recorde da “Crónica de uma morte anunciada”, relembro-o: o PCP encontra-se num caminho sem retorno e, tal como Santiago Nasar, a sua morte está irremediavelmente predestinada.
Bem sei que durante décadas vários comentadores anunciaram a morte do PCP, e que este sempre sobreviveu às inúmeras previsões. Contudo, as razões que hoje invoco reflectem um tal grau de agudização das contradições internas que tornam este caminho – o perecimento – inexorável. Há pouco mais de duas semanas, Jerónimo de Sousa anunciou a sua saída de cena, tanto como secretário-geral, como deputado do PCP, deixando o lugar a dois quadros mais novos: Paulo Raimundo e Duarte Alves, respectivamente. Mas engane-se quem ache que esta mudança significará uma lufada de ar fresco nas ideias comunistas. Esse nunca foi o modus operandi do PCP, nem nunca o será. A mudança de rostos é tão somente isso: uma alteração na dicção e tom do porta-voz.
Esta mudança de cortinados é uma característica comum aos partidos de inspiração marxista-leninista: prende-se com a sua organização interna, onde se dá muito mais valor ao colectivo do que à personalização do líder, quiçá excessiva noutros partidos. É, por outras palavras, o resultado prático do centralismo democrático como forma de gestão partidária. Tem as suas vantagens: solidez ideológica, coerência estratégica e pensamento de longo prazo. Existe, naturalmente, o reverso da moeda: ortodoxia, estrangulamento da liberdade de pensamento e a criação de apparatchiks (membros da máquina partidária) extremamente míopes.
É relativamente dúbio que o centralismo democrático seja efectivamente democrático. Ou seja, o PCP conta-nos a história de que todos os militantes são ouvidos, e cuja visão chega às mais altas instâncias do partido, nomeadamente ao comité central. Após essa auscultação, o comité debate e origina uma posição quanto a determinado assunto. Essa posição passa a ser a do PCP e, por inerência, de todos os militantes, mesmo que discordem da mesma. É uma vontade geral de Rousseau levada ao extremo. O problema é que Rousseau acreditava que esta seria possível com o homem-novo, o PCP acha que é possível com os homens velhos.
Esta é a principal característica que leva ao perecimento do PCP e que origina todas as outras causas. A ortodoxia e estrangulamento de pensamento criam situações críticas, como o alinhamento na guerra da Ucrânia, ou ainda um diferencial enorme de linguagem e propostas para as novas gerações. Como disse Francisco Mendes da Silva no Público: “o PCP está a morrer porque não representa ninguém". O PCP, extremamente envelhecido, efectivamente não fala para ninguém, mas parece não se importar com isso, pois nada faz para o evitar. Não se vê uma palavra para os mais jovens, muito mais qualificados do que os seus pais e com necessidades laborais distintas. Não se vê uma visão detalhada para o mundo digital e as suas consequências nefastas. Em suma, o PCP não percebeu que praticamente já não existem fábricas nem operários.
Diz-se muitas vezes que o PCP está, inevitavelmente, condenado a morrer, independentemente da forma como proceda: quer mantenha a sua linha estratégica ortodoxa e vá desaparecendo com a finitude dos votantes actuais, quer se reforme, correndo o risco de perder a parca base eleitoral que ainda tem. Creio que já o disse por mais do que uma vez neste espaço, mas nunca é demais repetir: não alinho em fatalismos históricos. As possibilidades que uma possível reforma poderia abrir são infinitas. Não falo de uma mudança completa da sua mundividência, mas de um alinhamento pós-moderno dos ideais comunistas: quem são os novos trabalhadores? Ainda existem operários? Que novas formas de economia produtiva poderíamos ter? Necessitamos de uma produção extrativa e intensivista? O facto do PCP não equacionar estas questões (ou de não lhes responder com pensamento do século XXI) é que sentencia a sua morte – não uma qualquer inevitabilidade fatal.
Não o digo com alegria – muito pelo contrário. É com bastante tristeza e pesar, pela sua história e lutas fulcrais, principalmente na melhoria das condições laborais dos trabalhadores históricos, que perspectivo para breve o fim do PCP. Dada esta certeza, peço ao leitor que não se deixe enganar quanto ao ónus da culpa: o PCP não se encontra nesta situação devido ao capitalismo, à correlação de forças, ao grande capital ou às instituições democráticas. A culpa da situação do PCP é somente de quem manteve o statu quo e a tacanhez de pensamento – do comité central e dos altos quadros. Segundo o novo secretário-geral, Paulo Raimundo: “há quem salive e desespere pelo fim do PCP. Pois daqui fica o conselho: esperem sentados". Dada a avançada idade média dos quadros do PCP, espero que o partido tenha investido em cadeiras confortáveis para que o comité central observe a morte do seu partido de forma cómoda.
Diz-nos Manuel Loff (notoriamente alinhado com o PCP), com exasperação para quem critica o PCP, que o “anticomunismo é caótico”. Eu estarei sentado, como pediu Paulo Raimundo, mas não a salivar e a desesperar, como disse, nem de forma caótica, como crê Manuel Loff. Esperarei com tristeza e pena pelo fim de um partido cujas lutas são essenciais para o mundo pós-moderno em que vivemos. Permitam-me a desfaçatez, mas diria que não existem maiores anticomunistas do que os membros do comité central. Serão estes a salivar e a desesperar de forma caótica, enquanto perecem. É, quiçá, a única grande diferença para com a “Crónica de uma Morte Anunciada”. Santiago Nasar faleceu de forma relativamente tranquila. Já o PCP irá estilhaçar-se em apoteose. Venha daí o termo “anti-comunista” para me descrever.
O autor não segue o novo acordo ortográfico