As 40 horas no século XXI
A pandemia e a resultante crise económica e social permitiu-nos pensar, com mais afinco, de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. Em concreto, possibilitou às diversas pessoas repensar o seu futuro, quanto às relações laborais e como abordar o trabalho. Este tipo de reflexão é comum quando algo perturba o normal funcionamento da sociedade, numa dimensão tal que obriga as pessoas a adaptarem-se e a estruturarem uma nova forma de viver. Se pensarmos desde o início do capitalismo de mercado moderno, estas reflexões aconteceram, sobretudo, com a Revolução Industrial, a I Guerra Mundial, a II Guerra Mundial e no fim da Guerra Fria, após a queda do Muro de Berlim.
Todos os momentos acima descritos revolucionaram a sociedade, em geral, e as relações laborais, em particular. Em praticamente todos, a melhoria das condições de vida dos trabalhadores foi notória, seja pelo aumento do salário real, pela diminuição das horas de trabalho, pela abolição do trabalho infantil, pela liberdade de associação e pertença em sindicatos, pela protecção social, entre outros. Refiro “praticamente todos” porque tal só não ocorreu, para os trabalhadores do mundo ocidental, na década de 80, com o fim da Guerra Fria, devido à liberalização extrema do mercado laboral e às políticas trickle-down de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
Agora que estamos num novo momento de definição da nossa sociedade, em vários aspectos (societais, ambientais, energéticos, produtivos), por imposição da pandemia e da emergência climática que vivemos, continuamos presos às amarras do passado, em particular quanto à jornada laboral descomedida. Tal excesso de horas de trabalho acontece devido a uma clara oposição de interesses entre os diferentes membros da sociedade. Todos os grandes pensadores marxistas e neo-marxistas devem ser lidos com os “olhos do momento” em que escreveram para uma melhor compreensão dos conceitos aplicados. No entanto, um conceito muito utilizado por eles prevalece válido até ao dia de hoje, quase sem alterações de semântica, e explica esta oposição de interesses: luta e conflito entre classes.
A oposição a este progresso nas condições de vida dos trabalhadores, mesmo sendo histórica, utiliza hoje vários argumentos, na minha opinião, frágeis. Destaco e refuto os dois mais comuns:
O primeiro é o da produtividade. Segundo os mais liberais, a produtividade em Portugal é baixa e, por isso, não podemos diminuir a jornada laboral. No entanto, a relação entre número de horas trabalhadas é inversamente proporcional à produtividade por hora obtida e o aumento da produtividade e a sua aproximação à média europeia nos últimos anos é indiscutível: desde 1995 aumentou, em termos reais, de 10,6€ para 22,8€, isto é, um aumento de 215%. Apesar disso, a carga horária é essencialmente a mesma desde esse ano. Isto significa que a produção, em termos totais, aumentou desde 1995. Então, segundo os liberais, produzimos mais por hora, produzimos mais em termos absolutos, mas ainda assim não podemos melhorar as condições de trabalho e, em particular, conciliar a vida pessoal/familiar com a vida profissional ao reduzir o número de horas de trabalho.
Não nego que este aumento produtivo permitiu um crescimento global acelerado e melhorar as condições de vida de todo o planeta. Mas tal não significa que não poderá ocorrer quando os trabalhadores tiverem mais tempo para projectos pessoais, que também acrescentam valor à humanidade e ao desenvolvimento de toda a sociedade. Nem creio que a diminuição do horário laboral leve, necessariamente, a uma quebra no crescimento. Ainda assim, mesmo sem esta mudança de paradigma laboral, um relatório da OCDE já aponta para uma diminuição do crescimento global para 1,5% nas próximas décadas, com uma preponderância superior da eficiência nesse crescimento. Significa que iremos crescer menos mas a eficiência geral irá aumentar, devido à inovação e disseminação de novas tecnologias. Para além do conceito de “crescimento ilimitado” num planeta com recursos finitos ser bastante discutível, este crescimento menor pode não ser, per se, um problema enorme, se tivermos em conta que um crescimento de aproximadamente 2% ao ano implica que a economia duplique o seu tamanho ao fim de 35 anos, ou seja, no espaço de uma geração.
O segundo argumento mais comum para impedir a redução do horário de trabalho é que, com a diminuição da jornada laboral, seria necessária mais mão de obra para fazer face ao número de horas "perdidas". Tal argumento até pode fazer sentido em profissões de elevadíssimo valor acrescentado e cuja interação humana é essencial, como carreiras ligadas à saúde, mas não é verdade para a grande maioria das profissões. Este raciocínio é até um claro contra-senso com a tendência das últimas décadas, muito imposta pelos próprios que agora dizem o seu contrário: o trabalho será (ainda) mais assente na robotização e digitalização, o que irá requerer menos intervenção humana. Ademais, a pandemia veio acelerar o processo de digitalização de muitas empresas, o que resultou num aumento, já perceptível, da produtividade. Este aumento significativo, aliado a uma maior inovação levará, cada vez mais, a uma menor necessidade de trabalho.
Entre muitas coisas, a I Guerra Mundial trouxe um rápido crescimento e o assegurar de direitos essenciais para os trabalhadores, como as 40 horas semanais. A II Guerra Mundial trouxe, ao nível europeu, o estado social e inaugurou um grande período de crescimento. Espero que não seja preciso uma III Guerra Mundial para avançarmos na melhoria do equilíbrio entre vida e trabalho.
O autor não segue o novo acordo ortográfico