Um fascista é um fascista


No passado fim-de-semana, realizou-se o IV Congresso Nacional do Chega. Foi convocado, essencialmente, para aprovar as alterações aos estatutos do partido que tinham sido feitas de forma ilegal no ano passado, conforme a decisão do Tribunal Constitucional. Se este contexto já era embaraçoso para o partido, o decorrer do congresso veio desvendar mais sobre o funcionamento do mesmo e certamente não deixa perspetivas animadoras – nem aos seus apoiantes sobre a competência dos que o chefiam, nem a nós, restantes eleitores, sobre as suas intenções.

Começando pela eleição dos delegados ao congresso, o evento tinha já estado envolto em controvérsia: na distrital de Lisboa, uma lista que se opunha àquela proposta pelas estruturas nacionais do partido foi impedida de se apresentar às urnas, em condições duvidosas. Os integrantes da lista avançaram para o Tribunal Constitucional e espera-se agora uma decisão vinda do Palácio Ratton que pode, uma vez mais, retirar a legitimidade ao congresso e deixar o partido em situação de ilegalidade. Mesmo nestas circunstâncias, a nível nacional, foram eleitos 80 delegados de 18 listas de oposição à atual direção, mostrando que o partido pode não estar no estado de paz interna que tenta transmitir para fora.

Ao longo do congresso, as tentativas de suprimir qualquer vestígio de oposição interna continuaram: uma vez mais, adiou-se o tema da eleição direta dos órgãos das concelhias, mantendo-se a nomeação pelas distritais ou pela direção nacional e silenciando-se sete propostas sobre o tema. Além disso, num apogeu de prepotência e autoritarismo, os novos estatutos reforçam os poderes do presidente – que passa, por exemplo, a poder nomear a totalidade dos candidatos a qualquer eleição – e da direção nacional de um partido cujo nome é cada vez mais permutável com “André Ventura Unipessoal, Lda.”.

André Ventura a falar num debate para as eleições presidenciais de 2021

Fonte: Pedro Pina/RTP, CC BY-NC-SA 2.0

No encerramento, Ventura optou por proferir barbaridades, num atentado à razão e aos valores democráticos à imagem do restante congresso. Numa ameaça à laicidade do Estado, usou um terço para prometer o retorno da religião ao discurso político. Proclamou os militantes do Chega como herdeiros do Império Português, num frenesim nacionalista delirante. Entoou a máxima de Salazar, “Deus, pátria e família” – à semelhança de outros delegados ao longo do fim-de-semana –, acrescentando-lhe o “trabalho”, em mais uma tirada mirabolante sobre o papão da “subsidiodependência”. Como se não lhe chegasse ser o sucessor do imperialismo e do salazarismo, acrescentou que o era também do sá-carneirismo, como se estes não fossem mutuamente exclusivos. Esqueceu-se, talvez, que Francisco Sá Carneiro defendia o Estado laico ou que lutou para reformar o Estado Novo e transformá-lo numa democracia à imagem da que vivemos hoje. Pelo meio, disse que Sá Carneiro “nunca se vendeu ao socialismo”, possivelmente ignorante do facto de que este tentou que o PPD (desde então renomeado PSD) integrasse a Internacional Socialista. Ainda sem se contentar com os danos já feitos à memória do histórico social-democrata, aproveitou para exumar o cadáver de velhas teorias da conspiração acerca do acidente de Camarate.

Findo o congresso, nem as tendências autoritaristas do líder do Chega foram suficientes: apesar de todos os esforços de tomar ainda mais controlo do partido, a imagem que passa para fora é que André Ventura começa a nem sequer ter mão no culto de personalidade que criou em torno dele, uma vez que um quarto dos militantes eleitos ao conselho nacional são da oposição interna.

Na verdade, a decisão que se espera do Tribunal Constitucional pode fazer com que o congresso tenha sido mais um exercício perfeitamente inútil para o Chega. Para mim, no entanto, já teve utilidade. Entre uma atitude perante a oposição interna digna de um tirano e o fedor a saudosimo salazarista, já não tenho pudor em caracterizar devidamente Ventura. Adaptando a frase do treinador de futebol Manuel Machado: na vida, um vintém é um vintém e um fascista é um fascista.


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