"Crónica de uma morte anunciada"
Na primeira frase do livro “Crónica de uma morte anunciada”, de Gabriel García Márquez, ficamos a saber que Santiago Nasar ia morrer. Ainda não sabíamos como, quando, nem com que intervenientes mas o seu destino estava traçado, desde o início. Qualquer semelhança desta narrativa com o CDS não é pura ficção.
Fundado a 19 de Julho de 1974, pela mão de Diogo Freitas do Amaral, o CDS é o resultado de uma tentativa de António de Spínola influenciar o espectro político-partidário. Para tal, decide mentorar a criação de um partido do centro-direita/direita, que compensasse a força dos partidos de esquerda (nesta altura o PPD/PSD ainda se afirmava de centro-esquerda). Na sua fundação conseguimos analisar o primeiro momento que levará ao seu mais que provável desaparecimento. O CDS decide juntar uma amálgama de ideologias, algumas contraditórias entre elas, que apenas perfilavam, sobretudo, o sentimento anti-socialista. Consegue aglomerar no mesmo partido liberais, conservadores, democratas-cristãos, sociais-liberais, federalistas (do ultramar) e alguns saudosistas, algo impensável, até para um grande catch-all party.
O momento-chave para a sobrevivência do CDS durante o Período Revolucionário em Curso foi o não alinhamento com a manifestação da “maioria silenciosa” a 28 de Setembro de 1974. Convocada por Spínola, esta manifestação, cuja extrema-direita aderiu, foi uma tentativa de mudar o rumo do país, o que chamavam de “Socialização de Portugal”. A convocatória para tal evento foi um claro insucesso (a maioria silenciosa era na realidade uma minoria escassa, ou como se dizia na época, uma minoria tenebrosa) e, o CDS emerge, no novo sistema democrático, como o único partido à direita do sistema com algum apoio popular.
Em 1978, 4 anos volvidos da sua fundação, Diogo Freitas do Amaral, decide fazer um acordo de governação com o PS. Acordo este, contra-natura, uma vez que os dois partidos não partilhavam praticamente nenhum espaço ideológico comum. Naturalmente, este governo caiu volvidos apenas 6 meses. No ano seguinte, assina um acordo de coligação com o PPD/PSD e o Partido Popular Monárquico (PPM), formando a chamada Aliança Democrática (AD). Este ziguezaguear inicial mostra, claramente, a inexistência de uma matriz ideológica coesa no CDS e de um não alinhamento das diversas facções. Este tipo de actuação, típico de um catch-all party, ainda que dentro de um espectro ideológico próximo, tende a implodir e a levar ao perecimento do partido, ficando apenas por definir o quando, como e com quem, tal como Santiago Nasar.
Os anos 80 abriram caminho à primeira sangria do CDS.
Sob a liderança de Cavaco Silva, o PPD/PSD reorienta-se ideologicamente para a direita do espectro português e, com isso, faz migrar os sociais-liberais do CDS para o PPD/PSD. Este esvaziamento de uma ala com peso relevante do CDS foi essencial para as maiorias absolutas que Cavaco Silva conseguiu. Basta analisar os números para perceber esta migração: O CDS pré-Cavaco Silva parte com cerca de 12.5% dos votos e na última maioria absoluta do PPD/PSD, em 1991, apenas consegue 4.5% dos votos.
Nos anos posteriores, Manuel Monteiro consegue segurar os conservadores e os democratas cristãos, assim como, de seguida, Paulo Portas faz o mesmo com os liberais. Tal incoerência ideológica dentro do mesmo partido durante tantos anos só foi possível porque estas duas lideranças foram de personalidades fortíssimas da política portuguesa.
Actualmente podemos assistir em directo à segunda sangria do CDS.
Já quase não existem democratas-cristãos, sobretudo devido à menor influência da igreja católica na nossa sociedade e na sua moral. Sobram, pois, liberais e conservadores. No entanto, estas duas facções têm, desde 2019, partidos com assento parlamentar representantes, exclusivamente, de cada uma dessas ideologias. Os liberais possuem a Iniciativa Liberal (IL) e os conservadores (mais extremistas) o CHEGA. Porquê votar num partido, sem ser por razões históricas ou de tradição, que mistura estas duas ideologias e que, até certo ponto, são contraditórias? O CDS deveria ter definido o rumo a seguir em 2020, quando ainda tinha tempo de optar por uma das alas e apostar seriamente nela. Todavia, no congresso de Janeiro de 2020 elege Francisco Rodrigues dos Santos, da ala conservadora, mas cuja análise à posteriori faz-nos cair, novamente, no populismo e no Catch-All Party, em detrimento, por exemplo, de Adolfo Mesquita Nunes, liberal confesso e um excelente quadro do CDS.
Entalado entre a IL e o CHEGA, o CDS perde relevância a cada dia e arrisca-se mesmo a desaparecer. Francisco Rodrigues dos Santos personaliza o que o CDS sempre foi: um ziguezaguear constante, neste caso entre o liberalismo e o conservadorismo. Representa ideias cheias de nada e de vazias de tudo. Mostra uma clara uma incompatibilidade entre o novo e o velho. Creio que não poderia haver líder que melhor representasse o CDS nestes seus momentos finais. Talvez, como a de Santiago Nasar, esta morte estivesse anunciada desde o princípio.
O autor não segue o novo acordo ortográfico.