Os escombros da bomba atómica
Na história da democracia portuguesa, só numa ocasião tinha uma proposta de Orçamento do Estado sido chumbada pelo Parlamento (Orçamento do Estado para 1979, Governo de Carlos Mota Pinto). Ontem, aconteceu pela segunda vez.
Na semana passada, tinha postulado que as ameaças dos partidos da esquerda parlamentar de não viabilizarem o Orçamento do Estado não eram mais do que uma elaborada peça de teatro, como em anos anteriores. Enganei-me. Os sinais que interpretei como sendo parte do tradicional jogo político eram, afinal, sintomas de uma distância considerável na negociação entre o governo e os partidos que o sustentavam. Agora, tenho de elogiar Bloco de Esquerda e PCP por, finalmente, se manterem fiéis às suas linhas ideológicas e por não fazerem ameaças vãs, ainda que critique qualquer opção que corroa a este ponto a estabilidade governativa. Crítica que acentuo por saber que este cenário era perfeitamente evitável com um acordo escrito depois das eleições de 2019.
Está instalada a crise política: convicto de que o XXII Governo Constitucional já não tem apoio parlamentar, o Presidente da República dissolverá a Assembleia da República nos próximos dias, conforme tinha garantido, forçando a realização de eleições legislativas antecipadas – um ato conhecido na política portuguesa como “lançar a bomba atómica”.
Será do interesse de todos escrutinar as causas do chumbo deste Orçamento do Estado ou avaliar o fascinante debate de ontem, no qual ficou evidente a completa rutura entre os antigos parceiros de “Geringonça” e onde os vários partidos, na prática, já começaram os discursos de campanha eleitoral. No entanto, para os efeitos deste texto, prefiro olhar para o futuro e tentar ponderar como serão os próximos meses do panorama político.

O Palácio de São Bento, que alberga a Assembleia da República
Fonte: Marco Mileu, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons
António Costa já assegurou que não se demite, o que, como fator atenuante à crise política, salvaguarda que teremos sempre um governo em plenitude de funções, capaz de dirigir o país em regime de duodécimos, entre 1 de Janeiro e a aprovação de um Orçamento do Estado para 2022, elaborado já pelo próximo governo.
O ainda primeiro-ministro é dono e senhor do seu lugar de secretário-geral do PS, sem oposição interna relevante a curto prazo. Além disso, as sondagens, antes das autárquicas e do resultado de ontem, apontavam para uma votação do PS ainda mais expressiva do que em 2019. Falta agora saber que efeito terá a derrota na corrida à Câmara Municipal de Lisboa. Além disso, a incapacidade de segurar o acordo com a esquerda pode impactar a confiança dos portugueses no Partido Socialista. Ainda assim, António Costa parece partir na linha da frente para sair vencedor das legislativas.
Para o resto da esquerda, o cenário não é tão alegre. A maioria das sondagens apontava para uma ligeira queda do Bloco de Esquerda. Também para a CDU se previa uma queda, mesmo quando comparando aos resultados pouco animadores de 2019. São maus resultados, ainda antes de se pesar o efeito destas negociações para o Orçamento de Estado. É possível que os eleitores destes partidos recompensem a maior intransigência na defesa das suas linhas programáticas. No entanto, é mais provável que punam estes partidos por comprometerem a estabilidade governativa, uma reação mais habitual do eleitorado. De qualquer das formas, o previsível neste momento é que o PS venha a precisar do apoio de ambos os partidos para voltar a formar governo e a vontade para tal de qualquer das partes deverá ser pouca, com os eventos de ontem frescos na memória. Em relação ao PAN, para já, a perspetiva mais otimista deverá ser a de manter os resultados das últimas legislativas, o que pode limitar a relevância do partido para as contas de formação do próximo governo. Finalmente, parece quase impossível que o Livre repita o feito de 2019 e eleja qualquer deputado.
O PSD é uma das maiores incertezas em relação às eleições vindouras. As eleições diretas para a liderança do partido – que Paulo Rangel tenta antecipar – podem mudar bastante as perspetivas eleitorais do partido. Uma vitória de Paulo Rangel afastaria o partido daquilo que ele tem sido com Rui Rio: da oposição pouco veemente e dos traços quasi-autoritários do atual presidente. Além disso, o eurodeputado parece abrir portas para a reconciliação com alas do partido que Rio afastou e para possíveis acordos com a Iniciativa Liberal, que trariam outra força ao partido na hora de escolher o próximo governo. Uma vitória de Rui Rio também pode ter efeitos positivos para o partido: a simples reafirmação do apoio ao líder e da convicção numa dada linha ideológica pode trazer novo vigor ao partido em vésperas das eleições legislativas. Qualquer um dos resultados, combinado com a recente tomada da Câmara de Lisboa, pode dar alento a uma subida do PSD nestas eleições. Ainda assim, parece improvável que ultrapasse o PS e impossível que atinja sozinho uma maioria absoluta.

Rui Rio e Paulo Rangel: brevemente, disputarão a liderança do PSD
Fontes: Partido Social Democrata, CC BY-NC-SA 2.0; Parlamento Europeu, CC BY 2.0
Para essas contas, interessará o CDS-PP. O Hélder Fontes já publicou aqui um excelente texto sobre a (falta de) vitalidade dos centristas em que mostra que o partido parece estar no seu último fôlego. Ainda assim, a sua proximidade histórica ao PSD no momento da governação torna o CDS-PP inevitavelmente importante para as contas eleitorais. Também para este partido se aproxima uma importante escolha da próxima liderança: Francisco Rodrigues dos Santos ou Nuno Melo. O primeiro, atual líder, já mostrou muita abertura a novos acordos com o PSD, abrindo até a porta a uma coligação pré-eleitoral. Já o segundo, prévio detentor do apoio dos populistas de direita, representaria um extremar de posição do partido, num último esforço (provavelmente infrutífero) de recuperar eleitores ao Chega.
Finalmente, a restante direita está em crescimento e prevê-se que estejam aqui os maiores vencedores com o facto de se convocarem eleições antecipadas: Iniciativa Liberal e Chega têm crescido em relação às últimas eleições e é praticamente certo que aumentem a sua representação parlamentar.
À primeira vista, o resultado mais provável será uma vitória sem maioria do PS e que os socialistas precisem do consentimento do Bloco de Esquerda e de uma das opções entre CDU e PAN para conseguirem voltar a formar governo, o que, no atual clima político, poderá ser um desafio consideravelmente mais difícil do que foi em 2015 e 2019. O PSD pode surpreender e crescer, especialmente com uma mudança de liderança, mas parece impossível que chegue sozinho à maioria. Mesmo somando toda a direita, essa maioria parece, para já, improvável. Especialmente quando, felizmente, ambos os candidatos à liderança social-democrata fecham a porta a acordos com a extrema-direita. Ao centro, António Costa não parece mostrar interesse em procurar entendimentos e não se prevê que passe por aí a solução.
Com tremenda incerteza em como seremos capazes de chegar a um novo governo, sabemos que muito está prestes a mudar no panorama político. Os próximos meses da política portuguesa não se afiguram fáceis, mas serão certamente cativantes.