O Terceiro Ato


Após as legislativas de 2019, o governo apoiado pelo PS deixou de ter um acordo escrito com as forças políticas à sua esquerda. Desde então, as negociações anuais para a aprovação do Orçamento do Estado têm vindo a ser progressivamente mais difíceis. É uma escalada de intensidade narrativa numa peça de teatro aborrecida. Nestes últimos dias, depois da apresentação do terceiro Orçamento do Estado desta legislatura, subiram as cortinas e começou o terceiro ato.

No passado dia 6, João Leão reuniu-se com os partidos para discutir as linhas gerais do Orçamento do Estado para 2022. Poucos dias depois, no dia 11, apresentou a proposta final do Governo para o documento no Parlamento e ficamos todos a conhecer as principais propostas: um reforço do programa IRS Jovem, um aumento das pensões mais baixas, um “aumento” dos salários da função pública (que, na realidade, só se trata de um retorno à normal atualização conforme a inflação, possivelmente insuficiente), um aumento do salário mínimo nacional, uma subida do número de escalões do IRS, entre outras. Em geral, mais do mesmo: nada que fuja às linhas gerais dos dois Orçamentos anteriores, nada que deva chocar os partidos que foram permitindo que esses Orçamentos fossem aprovados.

No entanto, os partidos da esquerda parlamentar portuguesa insistem em continuar em palco, nesta atuação. À semelhança do que sucedeu no ano passado, PCP e BE ameaçam chumbar o Orçamento. A escrita da peça é desleixada: as motivações dos intervenientes são transparentes e o final da história é previsível.

Três imagens lado-a-lado: da esquerda para a direita, António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa

O primeiro-ministro, António Costa; a coordenadora nacional do Bloco de Esquerda, Catarina Martins; o secretário-geral do Partido Comunista Português, Jerónimo de Sousa

Fontes: Arne Müseler, CC BY-SA 3.0 DE; Esquerda.Net Flickr, CC BY-SA 2.0; Rui Ornelas, CC BY 2.0; via Wikimedia Commons

Os partidos mais à esquerda no Parlamento sentem necessidade urgente de mostrar vivacidade e destacar as suas diferenças em relação a um PS que ameaça roubar-lhes o seu eleitorado. Dizem, por isso, que se recusam a aprovar o Orçamento do Estado, tal como está.

Em resposta, o Presidente da República não deixa espaço para dúvidas: se o Orçamento do Estado não passar, dissolve a Assembleia. No clímax da história, parecemos estar à beira de uma crise política. Mas as próximas cenas da narrativa não podiam ser mais claras: nem PCP nem BE querem partir para eleições antecipadas como os responsáveis por fazer cair o Governo e nenhum deles deverá deixar que isso aconteça, especialmente sabendo que, no contexto atual, perderiam muitos votos para o PS.

Assim, à mínima concessão no texto do Orçamento, um dos partidos cederá e permitirá que o documento seja aprovado na generalidade, abstendo-se na votação. Os leitores mais atentos perceberão que a peça é, afinal, muito repetitiva: já foi assim que se resolveu o conflito no ano passado, quando o PCP se absteve em troca de medidas como um aumento irrisório de pensões ou o prolongamento do subsídio de desemprego.

Se, como eu, forem da opinião que a governação de um país devia ser objeto de maior seriedade do que uma peça de teatro, devem perguntar-se como poderíamos ter evitado esta situação. A resposta é simples, até porque já a vimos, e já foi defendida por Rui Tavares, num texto que assinou no Público: um acordo escrito, formal, entre as forças políticas que sustentam o governo é fundamental e deveria ter sido consequência obrigatória das eleições legislativas de 2019, como foi em 2015, quando se inaugurou a chamada “geringonça”. Não só é essencial à estabilidade política, como permite que, na eventualidade de uma falha em matéria orçamental, seja imputada a devida responsabilidade a todos os partidos que a permitiram, sem espaço a manobras de retórica que a tentem evitar.

Mas, em 2019, não foi essa a opção que foi tomada e, sem saber, compramos todos bilhetes para uma triste peça de teatro. A estrutura clássica de uma peça ditava que o terceiro ato fosse o último, mas a arte evoluiu muito desde então e parece claro que, daqui a um ano, cá estaremos todos para ver o quarto. Fica o aviso: vai ser similar a este.


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