É um acordo ou é um buraco?
A minha geração já teve várias alcunhas: “geração à rasca”, “geração dos precários” e “nem-nem” (nem estudam, nem trabalham). É sobre esta última que quero escrever mas não na acepção mais comum da alcunha. Refiro-me aos nem-nem linguísticos: jovens que não sabem escrever, nem com o antigo acordo ortográfico, nem com o novo. Criamos toda uma geração que, ao escrever, fica presa em termos e conceitos, confunde hífens e aglutinações e omite indiscriminadamente cês e pês.
Ratificado em 2008, o Acordo Ortográfico assinado em 1990 teve um período de transição até maio de 2015, acompanhando o percurso escolar de várias crianças e jovens. Desde logo, nem todos os países que o assinaram em 1990 o ratificaram ou implementaram. O acordo está em vigor em Portugal, no Brasil, em São Tomé e Príncipe e em Cabo Verde, enquanto Timor-Leste e a Guiné Bissau apenas o ratificaram. Tanto Angola como Moçambique não o ratificaram, nem tampouco se prevê que o façam.
Este acordo não é uma mera evolução linguística, como tantas outras que ocorreram (e bem) ao longo da nossa história. É apenas imposição e subserviência. Não se trata de nacionalismo bacoco ou de qualquer superioridade intelectual e linguística da minha parte, mas sim de aceitar as diferentes evoluções históricas de uma língua comum, adaptadas às necessidades específicas de cada povo. Esquecer e apagar essas evoluções paralelas é apagar passos do percurso de cada um.
Em 2017, em apenas um mês, foi entregue na Assembleia da República um projecto de revogação com mais de 20 mil assinaturas, incluindo a participação de pesos pesados da cultura e política portuguesa como António Barreto, António Lobo Antunes, Jorge Palma, José Pacheco Pereira, Manuel Alegre, Pedro Mexia e Sérgio Godinho. A dimensão e visibilidade deste projecto mostra que existe discordância, em número expressivo, no seio da sociedade portuguesa, sobre o acordo e a sua implementação. O apoio destas diversas personalidades foi conseguido em apenas um mês. Fica na imaginação o que poderia ter sido conseguido com um debate sério e aberto, ciclos de discussão e uma participação alargada da sociedade. Em 2019, uma iniciativa com sensivelmente os mesmos números também deu entrada na AR.
Pelo contrário, a teimosia situa-se do lado que defende esta imposição ortográfica, ao mesmo tempo que não permite a generalização da discussão na sociedade.
São inúmeras as petições e propostas sobre este mesmo assunto, ainda que algumas contem com pouca adesão. Falta um movimento agregador desta parte da sociedade que não se sente representada pela língua que nos foi imposta, sem uma auscultação democrática e legítima do povo que a usa. A realização de sondagens sobre o novo acordo e sua implementação, além de estudos sobre a aceitação do mesmo, são a única forma de descalçarmos esta pedra no sapato. Um debate (ou vários) alargado com elementos da sociedade civil, académicos, linguísticos e representantes portugueses nos países de língua oficial Portuguesa são fulcrais para a percepção do e viabilidade deste projecto. Caso se verifique um descontentamento generalizado na sociedade portuguesa com este processo, não nos podemos inibir de o discutir na CPLP.
Devemos defender a autodeterminação dos povos quanto à sua escrita e a aceitação multicultural dos diferentes países de língua oficial Portuguesa. Em suma, é premente a valorização da nossa língua comum, com todas as suas diferenças. Caso seja a vontade do povo português, a revogação do Acordo Ortográfico-90. Entretanto, recomendo escutar o tema “Acorda” dos GNR, presente no belíssimo álbum “Rock in Rio Douro”:
“Óptimo ou caricato
É um acordo ou é um buraco
Quem o quer, esse muro concreto
É político mas analfabeto”
O autor não segue o novo acordo ortográfico.