Em marcha-atrás
A MUBi, Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, alertou que o valor dedicado à promoção da mobilidade ativa na proposta de Orçamento do Estado para 2023 é gritantemente insuficiente. Consegue ser inferior à quantia do ano passado – já essa insatisfatória – e começa a tornar-se virtualmente impossível que se atinjam as quotas de deslocações a pé e em bicicleta pretendidas nas estratégias atualmente vigentes.
Este valor proposto é de um milhão de euros, a dividir entre as aplicações da ENMAC (Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável)
No programa do atual governo, apresentado aquando da sua entrada em funções, este comprometeu-se, entre outras coisas, a “apoiar o desenvolvimento da rede nacional de infraestruturas cicláveis, dinamizar a criação de uma rede de cidades portuguesas amigas da bicicleta e promover e expandir o projeto ‘Cycling and Walking’, transformando Portugal num destino mundial para rotas pedestres e cicláveis”. É uma visão genérica, sim, mas aparentemente ambiciosa. No entanto, com orçamento para duas a três ciclovias rudimentares por ano, começo a temer que possa não ser alcançada.
A nível autárquico, o panorama da transição para uma mobilidade mais sustentável não se afigura particularmente mais animador, pelo menos nas maiores cidades do país. Em Lisboa, isso ficou evidenciado pela agitação que se sentiu há uns meses em torno de uma proposta perfeitamente razoável do Livre: a redução dos limites de velocidade e a eliminação do trânsito aos domingos na Avenida da Liberdade. Parece ser ultrajante que se queiram estradas mais seguras para os peões ou que se deseje entregar uma avenida às pessoas – imagine-se – um dia inteiro por semana. A medida, apesar de ter sido inicialmente aprovada, acabou parada num mar de burocracia, muito graças aos esforços do Presidente da Câmara.
Outra proposta do Livre em Lisboa, a de reconfiguração da Avenida Almirante Reis – um dos únicos projetos de urbanismo digno do século XXI que vimos em Portugal – acabou esquecida e varrida para debaixo do tapete. Foi substituída pela solução “provisória” de desistir da obliteração das ciclovias que estava a ocorrer nesse traçado e manter tudo igual. “Tudo igual” parece ser, aliás, palavra de ordem para os “novos tempos” de Carlos Moedas, no que diz respeito aos percursos cicláveis. Todos os projetos para ciclovias na capital estão agora em suspenso, aguardando auditorias e concursos públicos, que se prevêem tão céleres como sempre são em Portugal.

Trânsito na Ponte Vasco da Gama
Fonte: F Mira, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons
Já no Porto, parece bastante claro que o trânsito automóvel excessivo é um problema gravíssimo. O próprio Presidente da Câmara, Rui Moreira, admite que “o que acontece na VCI [Via de Cintura Interna] todos os dias é uma catástrofe ambiental”. No entanto, não adequa as ações às palavras.
Insiste na construção de novas vias como simples panaceia para o problema do trânsito. Juntamente com os autarcas de Vila Nova de Gaia e Gondomar, projeta uma nova via alternativa à VCI que, magicamente, há de resolver os aparentemente perenes problemas de circulação nas artérias da cidade.
Entretanto, parece que a ideia de uma nova ponte rodoviária sobre o Douro, à cota baixa, poderá ir mesmo por diante. Como alternativa, pode juntar-se à ponte que terá de ser construída para a ferrovia de alta velocidade – afinal de contas, não podemos desperdiçar toda uma ponte sem tentar incluir, no mínimo, uma estrada. Percebemos que Rui Moreira e Eduardo Vítor Rodrigues provavelmente não terão tirado ilações do último empreendimento similar. Inaugurada em 2003, a Ponte Infante D. Henrique custou 14 milhões de euros – lembre-se, 14 vezes o orçamento anual para mobilidade ativa proposto pelo governo para todo o país, mesmo excluindo a inflação – e nada fez para resolver o trânsito nas duas margens do rio. De facto, 19 anos depois, o Porto parece ser a cidade mais congestionada da Europa.
Este fenómeno é observado pelo mundo fora desde os anos 30 – já lá vão quase 100 anos – e relativamente consensual pelo menos desde os anos 80: trânsito induzido, uma adaptação do conceito económico de procura induzida à mobilidade. Consegue explicar-se de uma forma simples: potenciais condutores ouvem notícias de uma nova via, vêem o trânsito aligeirar-se nos dias que se seguem à sua inauguração e passam a utilizar mais o carro, na expectativa de que terão viagens mais rápidas e fáceis. O aumento de carros nas estradas rapidamente contrabalança a capacidade criada pela nova via e, a médio e longo prazo, ultrapassa-a, aumentando o congestionamento não só nessa estrada, mas também nas suas alternativas.
Talvez os autarcas de Vila Nova de Gaia e Porto, à semelhança de tantos outros pelo nosso país fora, só tenham à sua disposição manuais de planeamento urbano com mais de um século e possam, por isso, ser desculpados. Porém, na prática, o resultado dessa carência de informação é que estão prestes a criar mais trânsito numa cidade que precisa urgentemente de o reduzir. Fazem-no através de medidas que não encontram qualquer fundamento na evidência científica existente, ao invés de apostar em estratégias que comprovadamente reduzem a utilização de automóveis nas cidades em que são aplicadas.
“Que estratégias serão, então, eficazes em reduzir o uso do carro?”, perguntará o leitor. A resposta é surpreendentemente fácil: todas aquelas que dêem aos cidadãos verdadeiras alternativas ao seu automóvel. Uma rede de transportes públicos abrangente, com maior capilaridade, regular e fiável; infraestrutura que permita um uso confortável de bicicletas; cidades que possam ser inteiramente percorridas a pé de forma segura. Todas as medidas que nos aproximam destes objetivos dão-nos mais liberdade para largarmos os nossos carros, sabendo que temos outras opções mais sustentáveis e cómodas.
Na Área Metropolitana do Porto, observamos que estas estratégias têm, em muitas ocasiões, sido postas de parte, de forma a manter o status quo, ou alteradas e limitadas para acomodar o nosso foco em infraestrutura rodoviária. Um exemplo paradigmático é o da Ponte da Arrábida. Quando inaugurada, era surpreendentemente moderna para a era: acomodava confortavelmente peões e tinha ciclovias separadas fisicamente dos automóveis. Desde então, foi transformada em autoestrada sem vida e viu os impressionantes elevadores, que a caracterizam e que serviam as populações locais, serem desativados porque, surpresa das surpresas, já não é considerada segura para a travessia pedonal.
Existiram propostas para a sua adaptação à passagem do metro, incluindo um projeto premiado, mas foram colocadas na gaveta e descartadas. Entretanto, o presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia – munido da sua impecável intuição e de todos os conhecimentos de urbanismo que obteve na sua formação em Sociologia – caracteriza a ideia como não fazendo “sentido nenhum”. Em vez disso, avançaremos para a construção de mais uma nova travessia sobre o Douro (sim, outra, diferente das mencionadas anteriormente), consideravelmente mais dispendiosa. Arriscaremos causar danos irreparáveis à paisagem circundante – risco esse já advertido no Estudo de Impacto Ambiental – e minimizar o impacto visual da já desvirtuada Ponte da Arrábida, monumento nacional. Mas, ao menos, não perderemos nenhuma das suas sacrossantas vias de trânsito.
Dificilmente encontraremos exemplos que melhor ilustrem a mentalidade daqueles que nos governam. Enquanto esta não mudar, continuaremos condenados a usar os nossos carros, por falta de alternativas. Poderíamos pedalar em frente, mas seguimos fechados nas nossas caixas de metal e estão presas em marcha-atrás.

A Ponte da Arrábida, monumento nacional, arrisca-se a ser ainda mais descaracterizada depois da construção de uma nova travessia sobre o Douro
Fonte: António Amen, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons