Fantasmas do passado


No passado dia 25 de setembro, os italianos foram às urnas e, conforme previam as sondagens, deram a Giorgia Meloni e aos seus Fratelli d’Italia, a grande vitória da noite. Graças à coligação entre este partido, a Lega, de Salvini, e o Forza Italia, de Berlusconi, que totalizou 44% dos votos, Meloni tem agora mandato para se tornar a próxima Primeira-Ministra de Itália.

Gráfico com os resultados das eleições legislativas italianas de 2022

Os resultados eleitorais da contagem pelo método proporcional de votos à Câmara dos Deputados eleita em 2022, comparados com os de 2018 (apenas partidos com deputados eleitos)

O resultado terá deixado muitos preocupados e com razão para tal: os Fratelli d’Italia (FdI), ou Irmãos de Itália, são um partido da extrema-direita populista, derivado historicamente de movimentos formados por apoiantes de Mussolini após a queda do ditador italiano. Encontra raízes na Aliança Nacional, ultraconservadora, e, antes dela, no Movimento Social Italiano, assumidamente neofascista e nacionalista, fundado com o que restou do Partido Republicano Fascista de Benito Mussolini.

Os FdI nunca renunciaram a esta herança: são muitas as intervenções públicas dos seus militantes a defender as ações de Mussolini e inclusive Ignazio La Russa, fundador do partido e antecessor de Meloni, disse recentemente: “somos todos herdeiros de Il Duce. Giorgia Meloni tem tentado distanciar-se da figura do ditador fascista (exercício que foi, sem dúvida, fundamental para obter este resultado eleitoral), mas também ela é assombrada por declarações similares do passado, nas quais defende Mussolini.

Não será, então, infundado concordar com o que muita imprensa tem noticiado: Meloni é a primeira líder de um partido pós-fascista a chegar ao poder em Itália desde Mussolini; o fascismo voltou à Itália. No entanto, tenhamos mais calma antes de fazer declarações tão categóricas. Como quase tudo na política, o assunto não é assim tão linear.

Calma porquê? Afinal, se 44% dos eleitores italianos não passaram subitamente a ser saudosistas de Mussolini e a concordar com aqueles que o defendem, o que explica este resultado eleitoral? Na verdade, é muito mais fácil justificar esta votação pela reação ao anterior governo.

O governo de Draghi, de iniciativa presidencial, foi competente nas funções que tinha de desempenhar. Conseguiu, durante algum tempo, segurar uma frágil coligação de forças políticas tremendamente distintas, manteve a estabilidade orçamental em Itália, num contexto económico muito difícil, e, pelo meio, ainda tentou lançar a Itália para uma posição de liderança do projeto europeu. Porém, Draghi foi, desde o início, um alvo fácil para os FdI, não tendo sido difícil encaixá-lo na sua retórica populista: ex-Presidente do Banco Central Europeu, serviu perfeitamente como personificação do “bicho papão” que o partido tinha criado em torno das “elites financeiras”.

Além disso, nenhum governo consegue agradar a todos – é difícil sequer que agrade à maioria. Não terá ajudado que, como os anteriores, o governo tenha caído durante mais um episódio da já clássica instabilidade político-partidária da Itália pós “Operação Mãos Limpas”: um colapso da coligação que o segurava. Para muitos italianos, este foi um sinal de que, mesmo com uma figura respeitada como Mario Draghi, o panorama político do país continuava igual, envolto no caos, e era precisa mudança, a qualquer custo.

Para esses e para aqueles que estavam descontentes com as políticas recentes, só restava uma opção: os Fratelli d’Italia. A razão para tal é simples: foram o único partido com relevância eleitoral que, desde o princípio, se opuseram a esta solução governativa. Mais uma vez, recebemos uma brusca recordação de uma velha lição: quando entregamos a oposição a extremistas, os extremistas crescem.

É, contudo, importante esclarecer que os ganhos eleitorais dos FdI não foram construídos numa só legislatura ou por oposição a um só governo. Este resultado tem vindo a ser construído há muitos anos e é fruto de um processo de desinformação do público. A apontar-se um responsável principal por essa desinformação, tem de ser Silvio Berlusconi, agora uma das caras desta nova coligação.

Berlusconi começou a ganhar notoriedade em Itália nos anos 80. Numa era em que a televisão nacional italiana era inteiramente constituída por canais públicos, Berlusconi comprou vários pequenos canais regionais e, eventualmente, criou a primeira rede privada de canais de televisão nacionais: a Mediaset. Enquanto os canais públicos mostravam exclusivamente conteúdo sério e fortemente regulamentado, os canais de Berlusconi rapidamente encontraram mercado na programação de entretenimento, frequentemente escandalosa. Foi através desta rede, agora enorme, que Berlusconi construiu as bases para a sua ascensão política, logo depois do colapso dos partidos tradicionais italianos. Oportunista, aproveitou o caos para criar o seu partido, Forza Italia e, quase de imediato, chegar ao poder. Desde então, foi Primeiro-Ministro de quatro governos, sempre muito polémico e sempre moldando a cobertura informativa do canal público RAI1, expandindo o seu controlo sobre a televisão italiana.

Silvio Berlusconi criou em Itália um vazio de informação no conteúdo que chega à generalidade da população e esse vazio é terreno fértil para o sucesso da retórica populista – seja do seu Forza Italia, da Lega de Salvini ou dos Fratelli d’Italia de Meloni. Ademais, foi também Berlusconi que trouxe Giorgia Meloni, em particular, para uma posição de destaque na esfera política italiana, quando a nomeou Ministra da Juventude no seu quarto governo.

Será, no entanto, simplista atribuir toda a responsabilidade pelo crescimento da extrema-direita em Itália a Berlusconi. Foi também potenciado pela normalização destes movimentos, ato comum a muitos órgãos de comunicação social italianos, não apenas os da Mediaset. Frequentemente, apelidaram radicais como Meloni ou Salvini de simples “conservadores” e caracterizaram os seus partidos como sendo de centro-direita. A coligação entre Fratelli d’Italia, Lega e Forza Italia foi, aliás, geralmente denominada em Itália como a “coligação de centro-direita”.

Contudo, não se enganem: falamos de movimentos e personalidades que são tudo menos moderados ou conservadores clássicos. Tal é visível em alguns dos temas que escolhem como principais pilares ideológicos. Meloni passou a sua carreira a fomentar o medo e o ódio contra inimigos que inventou, como as entidades imaginárias a que chama “lobbies gay” ou o investidor George Soros, alvo comum a vários populistas de extrema-direita pelo mundo fora. Outro foco a destacar da retórica de Meloni e dos seus FdI seria ainda a imigração em massa, objeto de ataques muitas vezes fundamentados na teoria da “grande substituição”, uma teoria da conspiração que circula em círculos da extrema-direita. É tão absurda e profundamente abjeta que me recuso a descrevê-la em detalhe e a correr o risco de a propagar ainda mais, mas assinalo que também esta encontra algumas raízes no próprio Benito Mussolini.

Estes ideais estão completamente desalinhados com qualquer visão de uma sociedade moderna e evoluída. É apenas com o seu branqueamento que personalidades como Giorgia Meloni e movimentos como os FdI podem estar em posições que permitam alcançar resultados como os que vimos, não por uma súbita mudança das sensibilidades do eleitorado. Este votou com base na conjuntura política, num projeto político que se pintou como a única verdadeira alternativa de governo e que a comunicação social apelidou como “moderado”.

Fotografia de Giorgia Meloni

Giorgia Meloni, líder dos Fratelli d'Italia, será a próxima Primeira-Ministra de Itália

Fonte: Vox España, CC0, via Wikimedia Commons

Se esta leitura do eleitorado italiano nos aconselha a ser cautelosos ao dizer que “a Itália voltou a cair nas garras do fascismo”, essa cautela será também justificada pelo facto de a Itália não estar, na realidade, prestes a ter um governo fascista. Realisticamente, a conjuntura atual será uma barreira demasiado grande para que Meloni possa intervir em muitos dos temas a que se propõe atuar.

O governo de Draghi apresentou à União Europeia o seu plano para que pudesse receber os apoios relativos à recuperação pós-pandémica. O governo de Meloni terá de continuar a execução desse mesmo plano, sob pena de perder o acesso a fundos que serão cruciais à resiliência da economia italiana. Esta condição deverá impedir o novo governo de aplicar a sua ideologia de direita radical a muitas políticas económicas estruturais.

Os fundos europeus também servirão de entrave a eventuais tentativas de violação do Estado de Direito, uma vez que a União Europeia já os tem bloqueado no caso húngaro e Meloni dificilmente quererá ver a Itália na mesma posição entre os parceiros europeus. Talvez seja por isso que a próxima Primeira-Ministra já começou uma reconciliação com o restante Ocidente, tendo moderado o seu euroceticismo e se reaproximado da NATO – os FdI foram das poucas forças políticas a defender inequivocamente os apoios de Draghi à Ucrânia, apesar de estarem na oposição.

Também o resultado eleitoral não dará aos FdI a liberdade desejada para reformas profundas. Esta nova coligação não obteve a maioria de dois terços das câmaras parlamentares de que necessitaria para alterar a constituição, conforme já defendeu no passado, e transicionar a república italiana para um sistema mais presidencialista, que promovesse uma maior acumulação de poderes numa só pessoa.

A situação de Meloni complicar-se-á, dado que os Fratelli d’Italia não têm quadros que lhes permitam preencher um governo minimamente competente. Terão, muito provavelmente, de recorrer a tecnocratas independentes mais moderados ou, pelo menos, mais pragmáticos.

Finalmente, é previsível que a mesma instabilidade política que fez cair tantos governos italianos no passado faça sentir o seu peso sobre o governo de Meloni também. Muitos já prevêem que este governo possa não chegar ao fim da legislatura, destacando os parceiros de coligação de Meloni, particularmente voláteis e com algumas diferenças programáticas fundamentais – especialmente no que se refere à política internacional (Salvini e Berlusconi defenderam as ações de Putin em várias ocasiões).

Ainda que o custo da escolha possa ser mitigado pelas conjunturas políticas italiana, europeia e mundial e que estejamos muito longe de um momento em que devamos entrar em pânico, o eleitorado italiano fez uma opção perigosa: colocou forças políticas com ideais abjetos no poder e sucumbiu à retórica populista que corrói os pilares da democracia. É uma opção que pode fazer com que recuem muitos anos em progressos sociais previamente conquistados e uma que nos deve despertar para perigos similares por toda a Europa e pelo mundo. Continuamos, afinal, a ser assombrados por fantasmas como o de Mussolini.

Em momentos similares no passado, pelo mundo fora, fechamos efetivamente os olhos. Expressamos um leve repúdio e prosseguimos exatamente o mesmo caminho. Talvez agora que as consequências dessa teimosia estão aqui tão perto de casa, consigamos acordar e perceber que, para defendermos a democracia, temos de lutar diariamente pelos nossos valores e de mudar de estratégia. Conseguir restabelecer uma ligação com o eleitorado – encontrando políticas que visem efetivamente problemas que afetam a generalidade da população e adotando estratégias de comunicação mais eficazes – reveste-se de uma importância capital. Que este seja mais um lembrete de que a luta com outros moderados para “puxar a corda para o nosso lado” (seja à esquerda ou à direita) é importante, mas cai para um papel secundário quando urge lutar com radicais e fanáticos pela defesa das liberdades fundamentais que, enquanto sociedade, conquistamos a muito custo. Nesta luta, qualquer ato de normalização e legitimação dos extremos é uma arma que damos ao inimigo e que lembraremos com tristeza quando for tarde demais.


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