Nem só a morte é permanente
A minha avó sabia perfeitamente que todos os anos “a vida ficava mais cara” – sentia-o na pele. A magra pensão aumentava no início de cada ano; pelo menos era o que proclamavam os noticiários. No entanto, quando a acompanhava ao mercado em criança, ouvia-a dizer, sem entender, que o aumento tinha sido insuficiente para satisfazer “a vida cada vez mais cara”. Ao fenómeno que a obrigava a fazer escolhas difíceis não lhe associava nenhum termo. Nem o compreendia. A minha avó, para além disso, não sentia a necessidade de o saber. Havia que despender o tempo de forma mais útil: que bens deixar fora do cabaz?
O fenómeno que a minha avó sentia – a diminuição do poder de compra – também era, naturalmente, sentido por inúmeros outros concidadãos. O aumento generalizado dos preços atacava tudo e todos mas, como habitual, era mais forte com os mais vulneráveis. “Inflação”, o termo que aparecia na televisão, era apenas um jargão tecnocrata com um significado pouco ou nada compreensível. O perceptível era que algumas pequenas comodidades teriam de ser preteridas para satisfazer as necessidades essenciais. Os sacos, esses, vinham cada vez mais vazios.
Hoje, os terríveis dilemas que atormentavam a minha avó voltam a estar na ordem do dia. Não existe noticiário ou jornal que não comente o aumento generalizado dos preços – a temível inflação. Segundo estimativa do INE, a inflação em Setembro terá ficado em 9,3%, o valor mais elevado das últimas três décadas.
Há quem postule que se trata de um acontecimento temporário. Urge, logo à partida, explicar uma diferença subtil mas crucial para um correcto entendimento do fenómeno que vivenciamos. Inflação temporária não é o mesmo que subida de preços temporária. Inflação temporária significa que os preços aumentam e, passado um certo período, estabilizam num valor mais elevado. Uma subida de preços temporária significa que os preços sobem num determinado momento e, após algum tempo, descem e retomam a um patamar similar ao inicial. Ou seja, a subida de preços temporária contempla dois fenómenos económicos: primeiramente inflação (subida dos preços) e, posteriormente, deflação (descida dos preços). Sem medidas que as compensem, tanto a inflação temporária como a subida de de preços temporária, resultam em perda de poder de compra. Perda esta, que não é igual: o primeiro caso origina uma perda de poder de compra permanente e o segundo uma perda temporária.
Ora, se a perda de poder de compra é “apenas” temporária, pode-se perfeitamente conceber a ideia de medidas pontuais que cubram parcialmente a perda de poder de compra. Não é o caso. Não se afigura deflação no curto e médio prazo. Pelo contrário, prevê-se que a inflação se mantenha num valor elevado nos próximos tempos. Isto significa unicamente uma coisa: sem políticas substanciais a perda de poder de compra será permanente. Ademais, não só será permanente como enorme.

Money to Burn, de Victor Dubreuil.
Fonte: Creative Commons via Wiki Commons
Vejamos um exemplo simples. A função pública foi aumentada, este ano, em 0,9%. Significa que, num espaço de nove meses, os funcionários públicos perderam, grosso modo, 8,4% do seu salário. Em menos de um ano perderam mais de um mês de vencimento. O problema não se circunscreve aos funcionários públicos. É preciso dizê-lo sem rodeios – todo e qualquer português que não tenha visto o seu salário aumentar em pelo menos 9,3% perdeu poder de compra. Não estarei muito longe da realidade se disser que é o caso da esmagadora maioria da população.
Poder-se-ia argumentar que este valor de inflação é uma média ponderada que omite diferenças significativas entre diferentes produtos e serviços. É uma verdade de La Palice, mas esmiucemos o argumento. O grosso desta inflação restringe-se a bens essenciais, como o gás, a eletricidade e produtos alimentares frescos – estes últimos com um aumento pornográfico de 16,9%. Portanto, a média ponderada, que é este indicador, encontra-se abaixo do que é sentido pelos agregados familiares com rendimentos mais baixos. Como disse num outro artigo, a inflação atinge os cidadãos de forma desproporcional: os indivíduos com rendimentos mais baixos sofrem muitíssimo mais com este fenómeno (recomendo a leitura do artigo supracitado onde esta conclusão é corroborada com gráficos e uma análise simples).
Perante tal conjuntura esperava-se que o governo actuasse de forma eficaz e célere. Não o fez. Para além de tardio, o plano que apresentou não é sequer um penso rápido numa ferida aberta: a maioria das medidas são insuficientes e algumas são absolutamente abjectas. No curto prazo, então, o governo nada fez para evitar a perda de poder de compra – melhor dito, fez pior que nada. E quanto ao próximo ano?
Prevê-se que o aumento do salário mínimo nacional (SMN) não compense totalmente a inflação deste ano, nem que tenha em conta a do próximo. Um eufemismo para perda de poder de compra permanente, diga-se. É algo absolutamente incompreensível dado que se tratam dos salários mais baixos do país, e que são consumidos, essencialmente, em bens essenciais. Veremos aumentar, mais uma vez, a quantidade de pessoas que trabalha e que está no limiar da pobreza. Inconcebível num país que se diz moderno e desenvolvido.
Acima dei o exemplo da perda de poder de compra dos funcionários públicos, mas, como disse, o problema será transversal a todos os trabalhadores. Estudos de mercado com amostras consideráveis mostram que os aumentos previstos no privado vão ficar claramente abaixo da inflação. O governo, assim como a grande maioria das empresas analisadas neste estudo, seguem alegremente a teoria da espiral salários-inflação do BCE. Tiveram nesta instituição um suporte ideológico para a sua verdadeira intenção: não subir salários e aumentar margens e lucros. E não se deixem ludibriar – a lógica do BCE está errada. Esta parece simples mas falha num ponto crucial. Segundo o banco central, o aumento dos salários irá estimular a procura e, por conseguinte, promover e manter a inflação. Contudo, como já referi por várias outras vezes, esta inflação é causada essencialmente por choques externos à economia europeia, como a importação de bens energéticos, problemas nas cadeias de abastecimento e depreciação do euro face ao dólar. O BCE deveria estar a actuar directamente na fonte da inflação, isto é, no lado da oferta. Poderia, por exemplo, procurar a fixação de um valor máximo para a compra de gás, permitindo um alívio da inflação. Infelizmente, parece estar mais interessado em provocar uma recessão por falta de procura. Não sou eu que o digo, mas sim economistas proeminentes como o Prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz.
E quanto aos pensionistas, os cidadãos com os rendimentos mais fixos do país? A medida que o governo apresentou é absolutamente repugnante: os pensionistas vão receber metade do aumento previsto (que, note-se, já seria inferior à inflação) em Outubro. Isto significa que o aumento percentual em 2023 será apenas metade do inicialmente calculado, permitindo que a base de aumento para 2024 seja menor. Portanto, o governo, para além de deixar que a perda de compra seja sentida fortemente, perpetua-a de forma injustificável.
A minha avó, assim como muitos outros pensionistas, não se apercebeu de tal truque. E mesmo com várias explicações, torna-se difícil desconstruir tal medida. Como dizia um ex-primeiro-ministro nosso “é fazer a conta”. Acontece que os pensionistas não deveriam estar a fazer contas, nem quanto às perdas na reforma, nem quando vão ao supermercado. É uma velhacaria de todo o tamanho e que só demonstra desrespeito e ingratidão para com os nossos reformados. Só esta medida merecia um cartão vermelho ao governo.
Mais uma vez, iremos sofrer devido a políticas irresponsáveis, tanto do governo como do BCE. O próximo ano será terrível: para além de uma inflação elevadíssima, prevê-se uma estagnação do crescimento. O choque será de tal dimensão que não sei como sobreviveremos aos próximos tempos. No meio de tanta incerteza, alguma coisa ficará igual: as escolhas continuarão difíceis.
A minha avó costumava dizer que existia solução para todos os problemas do mundo excepto para a morte. Rematava com um “é a única coisa certa e permanente”. Não coloco em causa a sapiência de toda uma vida, complicada e laboriosa, mas creio que à sua análise tenha escapado a perda de poder de compra.
O autor não segue o novo acordo ortográfico