No bicentenário da liberdade


Celebra-se hoje o bicentenário do primeiro contrato social escrito em Portugal: a Constituição Liberal de 1822. Aprovada a 23 de Setembro, foi o culminar do trabalho das cortes constituintes eleitas no seguimento da revolução liberal de 1820. Este documento, para além de marcar o início do constitucionalismo em Portugal e de mudar por completo a organização e a origem do poder, introduziu vários conceitos até então ignorados, dos quais, talvez o mais importante seja o de liberdade.

Importa referir que este artigo não pretende fazer um relato ou descrever a origem da constituição – existem, para tal, inúmeros livros ou textos disponíveis. É, contudo, necessário contextualizar o enquadramento histórico das causas que levaram à sua aparição. Existia, em Portugal, um enorme descontentamento no início do século XIX. Além das ausências prolongadas do rei e da corte no Brasil (devido às invasões francesas), a regência continental, e a ingerência britânica não angariavam muitas simpatias. É por isso normal que, em 1818, dois cidadãos da alta sociedade portuguesa, Fernandes Tomás e Ferreira Borges, criem um grupo secreto denominado “Sinédrio”, com o objectivo de mudar o rumo do país – essencialmente através da organização de eleições para a proclamação de cortes constituintes. Ao longo de dois anos angariam vários membros de diversos sectores, incluindo militares e eclesiásticos. O trabalho do Sinédrio culmina na organização e participação da revolução liberal de 24 de Agosto de 1820. A esta sublevação seguiram-se, entre muitos outros eventos, as eleições para uma corte constituinte e a redacção da primeira constituição em Portugal.

A constituição liberal, aprovada a 23 de Setembro de 1822, inaugura um novo período em Portugal, muito descrito na época como a “regeneração portuguesa”. Pouco se fala do que a revolução liberal do Porto e a constituição liberal nos trouxeram, talvez por uma normalização, generalização e institucionalização democrática das conquistas da mesma. Ainda assim, importa não esquecer que a representação perante a nova figura política (corte proveniente de eleições), a separação de poderes e o respeito por direitos pessoais apenas foram oficializados em Portugal aquando deste novo pacto social. O mesmo se pode afirmar quanto a alguma liberdade. Refiro “alguma” porque as liberdades conseguidas na constituição não são propriamente as mesmas que consideramos hoje. Ainda que se compreenda que a seu tempo a liberdade outorgada possa ter feito sentido, havia quem, à época, a achasse insuficiente. E existe quem a ache mais que suficiente, actualmente. Vejamos, primeiramente, o que diz a constituição de 1822.

Este novo documento definia liberdade como “não serem obrigados a fazer o que a lei não manda nem a deixar de fazer o que ela não proíbe". Tal enquadramento pode ser visto como uma liberdade enquanto “não-limitação”, isto é, uma liberdade que é condicionada apenas pelas leis gerais que enquadram o contrato social. E o que pode fazer o Estado para garantir esta liberdade, agora escrita na constituição? O ponto seguinte do documento elucida perfeitamente esta questão: “A segurança pessoal consiste na protecção que o Governo deve dar a todos, para garantir a conservação dos seus direitos pessoais". Entende-se aqui esta segurança pessoal como a garantia do governo enquanto não-tirania e de protecção dos direitos pessoais, isto é, da sua liberdade.

A liberdade era, deste modo, percepcionada sobretudo como protecção da propriedade, que até então era facilmente expropriada por parte do Estado, sem qualquer contrapartida. Portanto, de acordo com esta constituição, para garantir e promover a liberdade basta, praticamente, assegurar a manutenção de direitos iguais, como é o caso da propriedade. Será isto suficiente para garantir a liberdade?

Por exemplo, à época, os escravos eram considerados propriedade (a constituição de 1822 ainda não os considera cidadãos). Sendo considerados propriedade de outrem e estando esses direitos assegurados, caso o Estado quisesse abolir a escravatura, isto é, expropriar os proprietários teria agora de os compensar (curioso como os compensados seriam os proprietários e não os escravos). É apenas um exemplo mas, como vemos, reflecte um enquadramento manifestamente insuficiente para considerar que se trata de verdadeira liberdade. Naturalmente dir-me-ão que os conceitos não são imutáveis: transfiguram-se consoante as mudanças histórico-políticas de cada tempo, e, por isso, evoluem. No entanto, não podemos justificar este entendimento de “liberdade” apenas pelo seu enquadramento histórico. À época vários autores consideravam a escravatura algo abjecto. Rousseau afirmou-o no Contrato Social, publicado 30 anos antes das grandes constituições mundiais aparecerem: “Um homem que se faz escravo de outro, não se dá, vende-se, para obter o seu sustento”. O caso torna-se ainda mais denso se pensarmos que a generalidade dos direitos, que asseguram esta “liberdade”, foram pensados apenas para os homens brancos e proprietários, excluindo mulheres, minorias, pobres, etc.

Quadro com um professor e alunos

Fernandes Tomás, nas Cortes Constituintes de 1821.

Fonte: Veloso Salgado, domínio público, via Wikimedia Commons

Deparamo-nos, então, com um conflito entre o que se poderia percepcionar como “a liberdade dos antigos versus a liberdade dos modernos” (a expressão encontra-se entre aspas porque refere-se ao título de um discurso de Benjamin Constant). O véu já foi levantado mas podemos afirmar que um dos pontos cruciais que distingue a liberdade que é outorgada na constituição liberal, e a que, de certa forma, vivenciamos hoje, é que a garantia de direitos iguais, e a punição pelo seu desrespeito, não é suficiente para a promoção de liberdade. A visão de liberdade presente na constituição é uma concepção extremamente reduzida da mesma e que praticamente ignora o papel do Estado na sua promoção, para além, lá está, da manutenção e garantia de direitos iguais. A garantia de direitos iguais para todos (e não só para alguns como a constituição de 1822 prevê) é condição necessária para a existência de liberdade mas não é, de todo, condição suficiente.

Que mais será necessário para atingirmos a liberdade que aqui percepcionamos? Vejamos outro autor da época, indubitavelmente um dos maiores vultos da cultura liberal portuguesa: Almeida Garrett. Participou na revolução liberal e questionou os “economistas políticos, os moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”. Ou ainda, em “O dia 24 de Agosto de 1820”, onde disserta sobre o seu apoio à causa liberal, explana que “os impostos nunca foram iguais (...) Não eram proporcionados às posses das pessoas; porque nas sisas, o homem rico e abastado pagava igualmente, e da mesma maneira, que o homem pobre e apoucado”. Podemos inferir que para Almeida Garrett, liberal da época, a concepção de liberdade outorgada na constituição seria insuficiente. Falta-lhe um outro pilar substancial: igualdade. O próprio afirma-o quando diz, no mesmo livro: “Os homens são iguais porque são livres, e são livres porque são iguais”.

Para que haja uma resposta eficaz às necessidades prementes da população, condição para que não sejam dominadas por alguém ou algo, ou seja, para que sejam verdadeiramente livres, é necessário um contrato social mais amplo que apenas “direitos iguais”. A igualdade de oportunidades e a distribuição justa da riqueza, requisitos necessários para a liberdade, não ocorrem através de uma organização de livre vontade de acordo com direitos iguais. É fundamental que o contrato social englobe questões de promoção de igualdade, sejam elas a educação, a saúde, a redistribuição e a tributação. A liberdade apenas ocorre quando uma entidade promove as condições básicas para a não-subserviência e para a não-dependência. Entende-se esta concepção de liberdade enquanto não-dominação (muito bem explicada por Jorge Pinto em “A liberdade dos futuros”). É, grosso modo, a concepção de liberdade que temos actualmente inscrita nas sociedades sociais-democratas europeias. E é a concepção de liberdade que Almeida Garrett entendia, há 200 anos atrás.

E quanto à entidade que deve promover as condições básicas? Mais uma vez, podemos recorrer a liberais da época para entender a quem cabe estas funções de promoção da igualdade. T. H. Green, filósofo inglês do séc. XIX afirmou: “(...) we must take men as we find them. Until such a condition of society is reached, it is business of the state to take the best security it can (...)”. Portanto, para T. H. Green, a promoção da igualdade e da liberdade deve ficar encarregue ao Estado. Concepção muito distinta de quem se intitula liberal hoje em dia.

Vejamos um outro exemplo: imaginemos um país hipotético onde exista uma correlação de forças no mercado de trabalho extremamente acentuada para um dos lados, levando a que vários trabalhadores se sujeitem a trabalhos penosos e a rendimentos abaixo do limiar da pobreza. É alguém verdadeiramente livre quando tem de se sujeitar a tais condições para obter a sua subsistência? Pode alguém dizer-se livre quando não é capaz de ultrapassar a miséria e a pobreza, mesmo quando trabalha e se esforça? E o que dizer da falta de oportunidades que impede o crescimento das pessoas? Muito dificilmente poderemos dizer que um povo assim é verdadeiramente livre.

Concluímos que, por forma a promover o aparecimento de liberdade, necessitamos de acomodar as condições para que a igualdade surja. E que cabe ao Estado promover essas condições de igualdade, formando cidadãos emancipados das garras da tirania, da dominação e exploração.

É por isso chocante a apropriação do conceito de liberdade por parte de um novo grupo em Portugal. A forma como estes novos “liberais” utilizam incessantemente a palavra liberdade, de forma displicente e estapafúrdia, é gritante e perniciosa. A alegada liberdade que tanto apregoam não é nada mais que uma visão simplificada e, em bom rigor, não-promotora da mesma. Vejamos: a liberdade, para estes “liberais”, refere-se somente à liberdade económica, da mão-invisível, da supremacia do mercado e do Estado mínimo. Em suma, uma liberdade assente sobretudo em direitos e regras iguais – as que regem os mercados. Como vimos, é claramente insuficiente para que os cidadãos sejam livres.

O que estes “liberais” defendem é a mesma visão de liberdade, diga-se, ultrapassada, que se utilizou aquando da carta constitucional de 1822. Se à época seria até certo ponto entendível que assim fosse, devido à supremacia de poderes instalados, no século XXI esta definição torna-se extremamente curta, após todas as conquistas feitas. É portanto, um entendimento de liberdade bastante limitado. Faço minhas as palavras que Pacheco Pereira utilizou como título de um artigo: “não deixem que os ‘liberais’ se apoderem da palavra liberdade". A estas palavras acrescento: não se deixem enganar pelo projecto destes "liberais". É promotor de individualização, desigualdade, submissão, imposição e servidão. Todos antónimos de liberdade.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


Gostou deste artigo? Partilhe nas redes sociais!