A receita mágica
De quando em vez, surge alguém que proclama ter descoberto uma forma de resolver todos os problemas de Portugal. Desta vez, esse papel ficou reservado à associação Sedes: esta apresentou um plano que, alegadamente, irá projectar Portugal para um novo patamar de desenvolvimento económico e social (o livro com as propostas detalhadas será divulgado no próximo dia 1 de Setembro). A Sedes pretende, com o seu plano audaz, nada menos do que duplicar o PIB de Portugal em 20 anos (sem se referir se este número é nominal ou real). Feitas as contas, pretende colocar Portugal a crescer 3,5% ao ano – um valor que nenhum país europeu moderno consegue manter, de forma sustentada, durante 20 anos, sem uma disrupção tecnológica ou produtiva muito significativa. É, portanto, relativamente inauspicioso que uma fórmula mágica, quase como uma receita, possa proporcionar tal crescimento. Mas a Sedes pretende mostrar que não. Olhemos então mais detalhadamente para a receita proposta, para os ingredientes e para a confecção e avaliemos se compensa ou não fazer este bolo.
A receita começa logo de uma forma desapontante – ainda mal tínhamos lido o título e o presidente da Sedes, Álvaro Beleza, já afirmava que a confecção do bolo iria ser muito trabalhosa e que envolveria “alguns sacrifícios". Para quem já tem algum à vontade com receitas desta natureza pode inferir o tipo de sacrifícios a que Álvaro Beleza se refere: flexibilização laboral, que envolve a perda de segurança dos postos de trabalho; transferência de poder negocial para os patrões, aumentando a sua influência na correlação de forças; perda de receita fiscal importante, com baixas de impostos indiscriminados; intensificação de processos de natureza produtiva, ou seja, com impacto ambiental significativo. Se o método de preparação já nos é apresentado desta forma, isto é, com 5 estrelas em escala de dificuldade, a vontade de fazer a receita é mínima. Até poderíamos estar dispostos a fazê-la e a suportar os custos que esta impõe caso o resultado compensasse o custo. Vejamos se a lista de ingredientes confirma a pressuposição inicial ou se, pelo contrário, mostra que haverá benefício em seguir a receita.
O ingrediente que serve de base a esta receita é o mesmo que é sempre apresentado nestes planos: a eliminação de taxas e “taxinhas”. Segundo Álvaro Beleza, a Sedes pretende “a eliminação de todas as derramas sobre o IRC; a redução imediata da taxa de IRC para start-ups para 15%; redução da taxa all-in de tributação das empresas para 15% e redução, para 18% da taxa de retenção na fonte para dividendos pagos". Só faltou mesmo a descida de algum imposto útil para os portugueses, como os que aliviam o orçamento das famílias, nomeadamente o IVA ou o IRS. Um dos (inúmeros) problemas do mercado laboral em Portugal é que ter um emprego não é suficiente para escapar à pobreza, isto é, uma descida nos impostos directos sobre o trabalho seria muito mais útil neste momento que uma descida nos impostos sobre as empresas. Mas António Beleza e a Sedes acreditam em histórias da carochinha, como a que os patrões (e liberais) geralmente relatam: se descerem os impostos às empresas vai ser possível aumentar o crescimento económico e, por conseguinte, salários (a tradução de trickle-down economics). Tal encadeamento lógico ainda está por provar. A desfaçatez de Álvaro Beleza quanto à tributação não se ficou por aqui. Questionado sobre se a descida dos impostos era o alfa e o ómega das propostas, retorquiu com um “não” indignado. Contudo, terminou a sua frase com “Todos os impostos têm que ser pelo menos um ponto percentual mais baixos do que em Espanha.” Portanto, para além de pretender tornar Portugal uma espécie de paraíso para patrões, pretende também iniciar uma corrida para o fundo (race to the bottom). Podemos concluir que se trata de um ingrediente algo indigesto para o cidadão comum.

Capa de um livro de receitas de 1917.
Fonte: Du Bois, Pa. Tested recipes via Wiki Commons
Outro ingrediente referido pela Sedes, tido como essencial para a confecção deste bolo, é a reforma da Segurança Social. Em concreto, a Sedes defende uma mudança total do paradigma das nossas reformas – transitar de uma reforma providenciada apenas pela Segurança Social e suas contribuições para uma reforma baseada em três pilares: contribuição da Segurança Social (com um patamar máximo), contribuição por parte da entidade patronal (ainda por perceber os moldes) e contribuição de poupança pessoal, baseada em PPR’s ou fundos de pensões. A proposta não é inócua – demonstra a preponderância das ideias liberais na nossa sociedade. Pensemos só na componente da poupança individual. A Sedes pretende aplicar lógicas de mercado a algo tão fundamental como é o estado-providência e, em concreto, às reformas de uma das classes mais frágeis da nossa sociedade. Pretende deixar poupanças familiares (para quem as possa fazer) livres num mercado que ultrapassa qualquer domínio colectivo. Além disso, esta é uma proposta promotora de desigualdade. Qual a poupança de uma família onde ambos auferem pouco mais que o salário mínimo e têm dois filhos em idade escolar? Qual a poupança onde só o custo da habitação, da alimentação e das despesas com os filhos pode atingir o valor do rendimento do agregado (esquecendo outras despesas supérfluas como alimentação, electricidade, ...)? Segundo a Pordata, até à pandemia, a taxa de poupança dos portugueses situava-se em torno dos 7% do seu rendimento. Este valor é pouco mais de metade da média da zona euro. Portanto, na realidade, o que a Sedes pretende é aumentar o fosso entre classes baixas e classes altas, não só durante a sua vida activa mas também durante a última etapa da nossa vida. Mais um ingrediente que custa bastante a engolir sem regurgitar.
A cereja no topo do bolo, mas que também é tida como essencial para esta receita da Sedes, é “dar prioridade ao aumento da eficiência da despesa do Estado”. Esta citação possui a minha total concordância. É importante (até mesmo fundamental) aumentar a eficiência da despesa do Estado, ou seja, devemos tentar tentar tirar o máximo proveito com os recursos que investimos actualmente. Mas o caldo fica entornado quando Álvaro Beleza diz que para aumentar a eficiência da despesa devemos promover “uma redução do peso das despesas públicas correntes não primárias sobre o PIB”. O jargão tecnocrata foi utilizado para esconder a verdadeira intenção da Sedes e o que a proposta efectivamente fará. As despesas públicas correntes incluem coisas tão prescindíveis e frívolas como salários da função pública, prestações sociais, subsídios, etc. Podemos todos qualificar algumas despesas do Estado como supérfluas, ineficazes, ineficientes, etc. Mas atentar a despesas fundamentais e essenciais de qualquer Estado moderno – salários de funcionários públicos, pensões e subsídios – só pode ser qualificado de abjecto, principalmente quando é notória a falta de vários profissionais públicos, incluindo médicos e professores. Esta cereja, que poderíamos pensar ser algo doce, é, na realidade, absolutamente intragável.
Por fim, como qualquer bolo, este exige a ida a um forno. Diz-nos a receita que terá de ser 40 minutos a 180 ºC. Esta até poderia ser a parte mais consensual da receita, mas nem aqui a Sedes deixou de proclamar ideias mortas e enterradas – pretende que o forno seja alimentado por energia nuclear. Já referi inúmeras vezes que a energia nuclear não pode ser um pilar energético do nosso futuro. Ou seja, as centrais que estão em funcionamento neste momento podem ser um suporte no mix energético e permitir uma transição relativamente suave para uma totalmente assente em energia renovável. Para que tal ocorra, não devemos estar neste momento a construir novas centrais nucleares (ainda para mais num país sem tradição nesta forma de energia). O foco deve ser o investimento total em energias renováveis. Para além do custo superior por MW/h produzido, o risco das externalidades ultrapassa claramente qualquer benefício que poderíamos obter.
A Sedes apresenta-nos uma receita com ingredientes demasiado perniciosos para o retorno que prometem ter (e que sabemos que não vão ter). Pessoalmente, nunca gostei muito de seguir receitas. Desconfio sempre de um guia que é totalmente fechado, sem liberdade de actuação e avaliação constante. Ainda que as receitas das nossas avós sejam particularmente boas, não vai ser esta a projectar o país para um novo estado de desenvolvimento. Devemos questionar todo o modelo proposto e aplicar esta lógica logo na primeira afirmação da Sedes: será que temos mesmo de crescer? Não devemos repensar o nosso modelo económico e considerar a hipótese de não estarmos ancorados a um crescimento infundado que leva o país, as pessoas e o planeta à ruptura? Existem inúmeros outros modelos económicos (já que estamos num momento degustação culinária, recomendo a leitura do modelo socio-económico Doughnut) que podem fazer mais sentido para um país do século XXI. Pelo menos, será mais sensato que o programa liberal e desigual que a Sedes propõe. Em suma, recomendo a todos os leitores que não sigam a receita da Sedes, sob risco de acabar com um bolo amargo e intragável.
O autor não segue o novo acordo ortográfico