Resposta a António Barreto


António Barreto, cronista no Público de há muitos anos, escreveu um manifesto de oposição à educação que alegadamente verifica nas escolas portuguesas, e que qualifica como sendo composta de “formas aberrantes de autoritarismo dogmático e de despotismo cultural”. Fornecendo um suporte ideológico à família de Famalicão envolvida numa polémica recente (que, aliás, refere no seu artigo), coloca-se ao seu lado quando aconselha todos os pais a proteger as suas crias do perigoso programa da disciplina de Cidadania – afirma que este “deveria ser banido pelas vias legais, políticas e institucionais”.

Para tentar salvar as crianças puras das garras da sociedade que as corrompe, António Barreto pretende reservar algumas partes do ethos dos pupilos para os seus progenitores. Pelo tom da sua descrição, crê que os alunos devem ser moldados de acordo com as normas e convenções sociais dos pais, muito mais puros que a sociedade. Mas quem garante a António Barreto que os progenitores não estão também eles corrompidos? Como pode António Barreto confirmar que as concepções e os preconceitos dos progenitores não são ainda mais perigosos para a educação dos jovens? Os pais, assim como as crianças, são um claro reflexo da sociedade em que estão inseridos. Estão, portanto, tão corrompidos como qualquer outro membro que a constitui. Poder-se-ia dizer, então, que se trataria de um exercício fútil – passar de uma educação corrompida para outra. Contudo, esta lógica não subsiste ao verificado na prática e a inferência não é correcta.

Num tom claramente jocoso, António Barreto descreve a escola como “o berço da sabedoria e da consciência, o ninho do civismo e do bom comportamento, o alfobre de virtudes e da rectidão”. Tais ironias pouco ou nada acrescentam ao debate. A escola é um reflexo da sociedade e do seu contrato social. Se a sociedade não é um berço de eloquência, uma amostra perfeita de civismo nem é repleta de virtudes, porque é que crê que a escola o deveria ser? E se a escola não o é, crê que os pais o são? Tal não é argumento para menosprezar o papel da escola na formação de cidadãos, que é absolutamente fulcral. Aliás, perspectivo este argumento de forma totalmente contrária – ter noção das debilidades da formação comum é um passo essencial para o seu progresso e evolução, não um ataque para a sua destruição.

Mas, então, qual é o papel da escola? Preparar os jovens para o futuro, fornecendo-lhes meios para a obtenção de um emprego? Formar pessoas competentes em várias áreas, criando eruditos, pensadores e tecnocratas? Estes podem ser resultados que a escola pode obter, mas são apenas consequências secundárias do seu papel primordial. A sua esfera de actuação principal deve ser, tão somente, formar cidadãos. É esta a discordância base entre o meu pensamento e o de António Barreto. Para este, o papel da escola restringe-se a ensinar as competências básicas, científicas e históricas. Mas isso, para mim, não chega para formar cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres e capazes de viver em sociedade. E é também impensável que esta parte seja reservada aos pais que, para além de poderem nem sequer ter o tempo necessário para a sua formação completa, podem ter ainda preconceitos perniciosos para com a sociedade. É por isso fundamental que certos elementos façam parte do currículo formativo, para além das componentes científicas básicas que António Barreto crê serem suficientes. Cabe à escola ensinar as regras da sociedade, a ética, o jogo democrático.

Muitos, nos quais se incluem os pais de Famalicão, são abertamente contra o ensino da identidade e igualdade de género e da educação sexual nas escolas. Esta é a sua principal luta contra o programa da disciplina de Cidadania. Muitas (boas) defesas destes conteúdos já foram feitas e não acrescentarei muito mais ao tema do que dizendo que o ensino da liberdade sexual em segurança e do respeito pela diferença do outrém são também fundamentais para a criação de um cidadão. Mas António Barreto vai ainda mais longe. Em cima desta rejeição, junta outros temas relativamente inócuos, mesmo para o mais empedernido dos liberais clássicos – o estudo da interculturalidade, das instituições e participação democrática, da convivência social e dos direitos Humanos. Aguardo um novo texto onde rejeite os restantes temas leccionados nesta disciplina – segurança rodoviária, ambiente, literacia financeira e o bem-estar animal.

Quadro com um professor e alunos

Retrato com três alunos da Academia de Artes, de Alexey Venetsianov.

Fonte: Museu de S. Petersburgo, Rússia via Wiki Commons

Em suma, a escola deve formar cidadãos plenos preparados para a convivência e coexistência com demais cidadãos, respeitantes das diversas diferenças, sejam elas ideológicas, sexuais, de gênero ou de qualquer outro tipo. A escola possui, assim, um papel de nivelação mínima da cultura democrática e societal, protegendo quem é oriundo de famílias menos cultas ou com menor poder económico (que está correlacionado com níveis inferiores de transmissão de cultura e de promoção de saúde). É, então, um instrumento promotor de igualdade, que reduz o peso dos diferentes pontos de partida dos pupilos, numa sociedade tão desigual como é a nossa.

Mas o ridículo da argumentação de António Barreto vai ainda mais longe quando afirma que “A escola deve ser democrática. Mas não deve ensinar a democracia. Nem formar consciências políticas.” Se até aqui havia quem tivesse dúvidas de que António Barreto pretende que a escola forme pessoas amorfas, sem o mínimo de consciência da realidade que os rodeia, agora ficou clara a sua intenção. António Barreto quer criar cidadãos disfuncionais ou, melhor dito, não-cidadãos. Afirma ainda que “A escola não deve ensinar ideologias de qualquer espécie, democráticas sejam elas”. Uma ideia muito acarinhada pelo Estado Novo, diga-se, e por outras formas autoritárias de sociedade – discutir estes assuntos deve ficar reservado apenas a uma elite.

Todo o artigo de António Barreto é uma tentativa de mostrar que o temível marxismo cultural (algo que não existe) impera nas escolas e que estas estão a tentar criar o homem-novo de Rousseau (algo que não é verdade). O projecto educacional de António Barreto simplesmente não se coaduna com uma sociedade aberta, plural e inclusiva. É um projecto retrógrado, individualista, de segregação e de manutenção das desigualdades. Não é exagero da minha parte. Sem o conhecimento das diversas realidades do mundo, dos diferentes projectos políticos e sociais, das divergências quanto à inclusividade ou segregação, do confronto entre visões distintas, as crianças ficarão presas a uma bolha intelectual, originando “cidadãos” tribalistas e fechados.

António Barreto e os pais de Famalicão estão no pleno direito de romper com o contrato social que celebraram. Como escreveu Rousseau no Contrato Social: “Se existe quem se oponha ao pacto social, a sua divergência não invalida o contrato, mas impede-o de tomar parte nele; é um estranho entre os cidadãos.” Já as crianças, para poderem tomar esta decisão de forma consciente, devem ser ensinadas sobre as diferentes vicissitudes da sociedade na qual se perspectiva que possam viver, e só depois podem decidir manter o contrato social ou romper com ele. Não haverá melhor disciplina que possa proporcionar esta liberdade que a de Cidadania. Não haverá melhor local do que uma escola. Não haverá melhor interlocutor que um professor.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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