O coração bate e as pernas tremem
No passado dia 21, numa tentativa de conter a inflação, o BCE decidiu aumentar as suas taxas de juro em 50 pontos base. Assim, a taxa de juro de referência atingiu o valor de 0,5%, o mais alto dos últimos anos. Esta foi a primeira subida em onze anos, desde a crise das dívidas soberanas, e a maior nos últimos vinte. Os que se auto-intitulam “falcões” provavelmente abriram garrafas de champanhe e celebraram uma vitória, pois conseguiram influenciar o BCE a subir o dobro do que se previa – até há poucos dias era previsível que o BCE aumentasse as suas taxas somente em 25 pontos base. Os perigos de uma subida vertiginosa foram ignorados e as chamadas “pombas” foram derrotadas.
Antes de passar ao cerne do artigo, farei um pequeno desvio para considerar que a designação de “falcões” para os que defendem políticas austeritárias e monetaristas e de “pombas” para os que defendem políticas keynesianas e expansionistas só pode ser considerada de abjecta. A Economia não é uma ciência exacta e as diferenças de opinião são perfeitamente válidas, fazendo isso também parte do jogo democrático. A utilização e veiculação de termos, claramente jocosos para uns e dominadores para outros, demonstra também de que lado alguns órgãos de comunicação social se encontram.
Aparte feito, o BCE, em comunicado, afirma que o seu principal objectivo é retomar um caminho que garanta 2% de inflação no médio prazo. Tendo este alvo em mente, aumentaram as taxas de juro por forma a arrefecer a economia europeia. O aumento das taxas de juro resultará numa diminuição do investimento e do consumo – isto não é matéria de opinião, é o que consta em qualquer manual de Economia. Tal é descrito no próprio comunicado, quando se afirma que tal é feito para “garantir o ajustamento das condições da procura". Traduzindo isto para português, significa que o BCE quer, declaradamente, combater a inflação pela redução do consumo e do investimento, ou seja, por uma crise de procura. A diminuição da procura, aliada a expectativas baixas por parte dos empresários, irá por sua vez estagnar a economia, diminuir salários e o número de postos de trabalho – segundo o BCE a inflação irá diminuir se não consumirmos tanto.
Mas mesmo o próprio BCE sabe que a inflação que se verifica na União não tem origem num motor interno mas antes na importação de bens energéticos. A própria presidente do BCE, Christine Lagarde, num artigo no jornal Público, corroborou esta visão. Isto significa que a subida das taxas de juro do BCE não vai ser eficaz no combate à inflação, porque não afecta directamente a fonte deste fenómeno (algo que eu já tinha afirmado num artigo escrito anteriormente). Ou seja, o aumento das taxas de juro não vai conter a inflação tanto como o BCE tenta proclamar e vai prejudicar a economia, gerar uma crise, reduzir o crescimento, aumentar o desemprego e contribuir para uma possível estagflação (combinação de inflação com estagnação económica). Ainda que não seja totalmente reprodutível, um claro exemplo disso é a situação económica dos EUA. A Reserva Federal já subiu múltiplas vezes as suas taxas de juro, em 75 pontos base, e mesmo assim a inflação não cessa de aumentar.
<p style="text-align: justify; text-indent:30px;">Christine Lagarde, nesse mesmo artigo, afirmou que tudo fará para travar a escalada dos preços. <strong>Os restantes europeus “não-falcões” (no quais me incluo) aguardam medidas que efectivamente o façam, porque não será a subida dos juros que travará o aumento dos preços. </strong>Ou, se o fizer, será à custa do comum dos mortais, por uma redução do consumo a tal nível que uma recessão se torne inevitável e os preços se ajustem por falta de procura. </p>
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Sede do BCE, em Frankfurt, na Alemanha.
Fonte: The First Class Travel Guide via Wiki Commons
Sabemos bem, por experiências passadas, que as recessões económicas são extremamente desiguais e afectam significativamente mais os que se situam na base da pirâmide social. Mas as crises não são apenas desiguais entre as pessoas. São também desiguais entre países, no caso entre países mais e menos ricos. O aumento dos juros de referência já fez disparar os juros das diversas dívidas públicas europeias. Contudo, os juros da dívida de alguns países subiram mais que outros. Neste momento, os juros da dívida italiana são praticamente o triplo dos juros que a Alemanha paga (Portugal situa-se num meio termo entre ambos). Por forma a evitar um desfasamento dos juros tão significativo como em 2011, e que quase levou o projecto europeu à ruptura, o BCE decidiu criar um novo instrumento que, alegadamente, irá suavizar e mitigar os diferenciais entre as diversas taxas de juro das dívidas europeias. Contudo, pouco ou nada se sabe deste instrumento. Irá actuar quando o diferencial for acima de um valor significativo? E o que é significativo para o BCE? Irá actuar sem qualquer limite monetário? Poderá actuar simultaneamente em vários países? Com que critérios? Terá alguma contrapartida? O instrumento possui um véu completo. Se esta foi uma tentativa do BCE acalmar os mercados especulativos de dívida, então o plano saiu furado, porque o instrumento possui uma utilidade muito próxima de zero nesta fase.
Vários destes problemas poderiam já ter sido resolvidos se existisse uma dívida conjunta europeia, os tão proclamados eurobonds – dívida pública comum da zona euro. Isto permitiria que a dívida de um país fosse assegurada pelos restantes países e vice-versa. Resolvia o problema dos diferenciais entre países, ao eliminar essas diferenças, e todos os países da zona euro passavam a financiar-se à mesma taxa. Permitiria também anular a desigualdade de acesso aos mercados, entre os diversos países, e a consequente desigualdade entre cidadãos europeus. Permitiria ancorar o projecto europeu (e em concreto o euro) numa entidade que geria e emitia dívida comum (com a necessidade de um incremento do orçamento europeu ao invés dos ridículos 1% do PIB). É impensável o projecto da moeda única ter mais de 20 anos e não existir ainda uma dívida única. Portugal abdicou da sua soberania monetária (que lhe poderia ajudar a resolver directamente a inflação), aceitou uma moeda demasiado forte para a sua economia e agora os países da Europa central não querem dívida do sul (a proclamada mutualização da dívida). A França e a Alemanha ficaram com o melhor dos dois mundos – uma moeda e um mercado que lhes permite explorar toda a sua indústria e um financiamento de dívida bastante baixo. Os restantes países europeus, particularmente os do sul, ficaram com o pior dos dois mundos – perderam a sua soberania monetária, que lhes permitiria mudar a política macroeconómica, e ficaram ancorados numa moeda muito forte. Mas a mutualização da dívida não seria a única medida possível: limites na taxa de lucro de produtos energéticos, controlo de capitais, imposto sobre fortunas, são exemplos de como combater este problema.
O BCE deve ser mais cauteloso com a sua política macroeconómica porque aparenta estar a gerir o dossier da inflação com vieses económicos perigosos. Depois da crise das dívidas soberanas em 2011, que deixou marcas, quiçá insaráveis, nos países periféricos do sul, qualquer passo em falso poderá deitar por terra o projecto europeu. A seguir ao Brexit, a uma crise sanitária e ao acentuar de populismos por toda a Europa que, por exemplo, resultaram na demissão de Draghi na semana passada, uma nova crise das dívidas é tudo o que os europeus menos querem. Todavia, parece que é esse o caminho que o BCE está a trilhar.
Quando Draghi se demitiu, na passada quinta-feira, afirmou: “Até o coração dos banqueiros bate”. O problema para o comum dos mortais é que quando o coração dos banqueiros bate demasiado, e estes se excitam com as taxas de juros das dívidas, as pernas dos restantes membros da sociedade tremem.
O autor não segue o novo acordo ortográfico