Podemos evitar neo-ludistas?
Não sou dado a fatalismos empíricos porque estes, na sua grande maioria, provêm de medos irracionais, concepções erradas sobre a evolução e, também, falta de fé no progresso humano. Thomas Malthus, economista britânico, alertou, no final do século XVIII, para o facto da população humana estar a crescer a um ritmo muito superior ao da produtividade agrícola. Previu que essa diferença iria acentuar-se cada vez mais, o que, a médio prazo, resultaria em escassez, fome, guerra, usurpação e morte. Duzentos e cinquenta anos volvidos, temos uma população 7x maior e um ínfimo número de pessoas a trabalhar na agricultura, por oposição ao século XVIII, onde a esmagadora maioria vivia do campesinato. Daqui podemos tirar uma de duas conclusões: ou ainda não chegamos ao “médio prazo”, opção que creio não recolher grande adesão, ou Malthus estava errado.
Desde a revolução francesa, com a criação de novas instituições políticas e, sobretudo, desde a revolução industrial, com o advento de novas tecnologias, a produtividade humana tem aumentado significativamente. O progresso humano, face a novos desafios e oportunidades, que resultou no aparecimento de novos equipamentos e processos, foi constante desde o início do século XIX. A frase anterior encontra-se no passado, porque o crescimento agora não é constante – falarei sobre isso adiante, após algumas considerações pertinentes.
Achar que a inovação e o desenvolvimento são pacíficos é, manifestamente, pueril. Sempre existiram grupos com um medo (fundamentado) de perder o seu emprego e que se opuseram fortemente à massificação de novas tecnologias e processos. Um dos grupos mais célebres ficou conhecido como “ludistas". Estes, sentindo o seu emprego sob ameaça de “máquinas” que não compreendiam, destruíram vários equipamentos que estavam a “complementar” (eufemismo para substituir) o seu trabalho, numa série de revoltas anti-progresso.
No entanto, tal como Malthus, os ludistas estavam errados. Não só o número total de empregos não-agrícolas desde então subiu, resultando em escassez de mão de obra semi-qualificada, como as condições de vida melhoraram devido, também, ao aumento da produtividade (importante não olvidar ou branquear o trabalho infantil, as péssimas condições de trabalho nas fábricas do séc. XIX e a importância de organizações como sindicatos).
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Ludistas, no século XVIII, a destruir um equipamento.
Fonte: Chris Sunde via Wiki Commons
Durante o século XX, vários teóricos e especialistas previram a destruição massiva de emprego. Dois grupos opostos formaram-se: os que admiravam o crescimento da tecnologia e acreditavam que o ser humano iria prosperar infinitamente e os que consideravam que a tecnologia iria gerar caos, fome e revolta, com uma população totalmente desempregada. O que se verificou nas últimas décadas foi que, mesmo com a crescente automatização de processos e serviços e consequente destruição de emprego, as taxas de desemprego dos países não subiram abruptamente, pelo menos tanto como alguns poderiam esperar. Estariamos em condições de inferir que, mais uma vez, o segundo grupo, que inclui os fatalistas históricos, estava, aparentemente, errado. Contudo, desta vez, não estou tão certo de tal.
Como referi anteriormente, o crescimento da inovação e da disrupção tecnológica era constante. Quando apareceram as primeiras inovações, os indivíduos tiveram tempo para se adaptar às mesmas e utilizaram-nas em seu benefício. Hoje, não podemos estar tão seguros de tal encadeamento lógico. A velocidade actual de aparecimento de novas tecnologias não é constante, antes exponencial. Isto torna muito complexa a adaptação do ser humano às diversas sociedades em que vive ao longo da sua vida (até porque hoje a sociedade é indissociável da tecnologia). Dada essa fugacidade, afigura-se complicado prever o futuro e, em concreto, o novo mercado laboral. Contudo temos algumas pistas de como este poderá ser.
As taxas de emprego mantiveram-se estáveis nas últimas décadas devido a um reforço significativo na instrução e ao aparecimento de mais empregos qualificados, que foram, naturalmente, menos destruídos. Ou seja, o processo que ocorreu foi a destruição de empregos de baixas qualificações (como sempre ocorreu, mas agora a um ritmo acelerado) e o aparecimento de novos postos, geralmente mais qualificados. Daqui resulta um dos primeiros problemas do mercado laboral pós-moderno – uma fatia considerável da população menos qualificada perde emprego e não consegue transitar ou fazer reconversão para novos postos, geralmente mais qualificados. Torna-se, por isso, premente o reforço das qualificações ao longo da vida (e mesmo isto poderá não ser suficiente). A automatização está, como a inovação e a tecnologia, em claro movimento acelerado. Se antes os novos equipamentos complementavam o trabalho dos indivíduos, hoje são capazes de o substituir por completo. A esmagadora maioria dos trabalhos de colarinho azul, ditos pouco qualificados, estão em perigo iminente de desaparecer, mesmo com o reforço das qualificações ao longo da vida. Isto não significa que os empregos de colarinho branco estejam livres de perigo. Parte do nosso trabalho, mesmo que seja altamente qualificado, é assente numa rotina. Uma inteligência artificial, minimamente avançada, conseguirá substituir grande parte dele, a uma fracção do custo de um empregado, e será capaz de trabalhar 24/7.
À primeira vista isto seria excelente: colocar robôs e sistemas autónomos a trabalhar, de forma permanente, e os humanos ficarem a descansar ou a aproveitar todo o tempo para, de facto, viver. Esta percepção não é nova – o maior economista da História, na minha opinião, Keynes, previu (erradamente), na década de 20 do séc. XX, que iríamos trabalhar 15h/semanais dentro de 100 anos. Infelizmente para todos, mesmo com o aumento exponencial da automatização, continuamos com o mesmo horário laboral que foi conquistado na I Guerra Mundial.
Contudo, a chamada singularidade, isto é, a automatização total, é cada vez menos ficção científica, o que levantará vários problemas num futuro próximo. Várias destes obstáculos assentam, sobretudo, no modelo económico vigente, que se baseia essencialmente em oferta e procura. Ora, se os humanos não trabalham (portanto, não recebem) e os robôs não consomem (para além de peças e alguma manutenção), toda a economia vai quebrar num curtíssimo espaço de tempo, por falta de procura para uma oferta cada vez maior. Portanto, se quisermos continuar com este modelo, mesmo para uma queda substancial dos preços (devido à diminuição dos custos de produção e do aumento da oferta), teremos de fornecer rendimentos aos humanos, para estimular (ou manter) a procura. Precisamos, por isso, de estudar novas formas de rendimentos, como o RBI. Mas se há algo que devemos retirar deste texto é que os fatalismos históricos estão, geralmente, errados – poderemos não ter sequer um modelo de oferta e procura no futuro. Ainda que as seguintes palavras sejam um terror, principalmente para os mais liberais, poderemos estar na iminência de um projecto de planeamento central, não inteiramente marxista, mas adaptado à economia automatizada e digital do século XXI.
O importante é começarmos hoje a pensar neste tema e não correr atrás do prejuízo. Teremos cada vez menos tempo para correr. Se não estivermos preparados para um modelo com baixos níveis de emprego, com aumento significativo do tempo disponível e novas formas de rendimento, não nos poderemos queixar quando os neo-ludistas aparecerem.
O autor não segue o novo acordo ortográfico