Manter os adversários por perto
Durante metade desta quinta-feira o país esteve politicamente parado. Nem cimeira da NATO, nem conferência sobre os oceanos, nem dados recentes de inflação – nada disto interessou. Durante horas, só se discutiu se Pedro Nuno Santos, ministro das Infra-Estruturas, ia ou não sair do Governo.
Pedro Nuno Santos fez avançar, na quarta-feira, um despacho a anunciar a decisão de uma pista temporária no Montijo, até 2026, enquanto a transição do aeroporto da Portela para Alcochete não estivesse concluída. Ao que tudo indica, tal decisão foi feita à revelia da oposição, do Presidente da República e até do próprio Primeiro-Ministro, António Costa. Se inicialmente, tinha sérias dúvidas que esta tivesse sido feita (totalmente) nas costas do Primeiro-Ministro, após a conferência de imprensa de Pedro Nuno Santos esta suposição caiu por terra. Já lá iremos – antes, uma breve recapitulação da relação entre dois homens fortes do Governo.
A relação entre o Primeiro-Ministro e Pedro Nuno Santos já se encontrava tensa ou até mesmo deteriorada há alguns anos. Para além de provirem de alas distintas do partido – Pedro Nuno Santos manifestamente mais à esquerda do que António Costa –, já chocaram noutros assuntos. Provavelmente o mais conhecido ou marcante terá sido o desacordo quanto ao plano de reestruturação da TAP, caso em que o Primeiro-Ministro levou, naturalmente, a sua avante.
Um dia depois da apresentação do despacho com a decisão para o novo aeroporto de Lisboa, o Primeiro-Ministro revogou-o, argumentando que “a solução tem de ser negociada e consensualizada com a oposição, (...) e, em circunstância alguma, sem a devida informação prévia ao senhor Presidente da República". O desautorizar do ministro vai ainda mais longe quando o gabinete de Costa escreve "Compete ao Primeiro-Ministro garantir a unidade, credibilidade e colegialidade da ação governativa". Em somente três parágrafos, o Primeiro-Ministro puxa o tapete a Pedro Nuno Santos, deixa-o isolado com a sua decisão e, no momento da comunicação, com os dois pés fora do governo.
Querendo granjear apoio sobre um assunto que está por resolver há décadas, Pedro Nuno Santos apressou-se a apresentar uma solução contra as indicações do próprio Primeiro-Ministro – António Costa referiu que queria ouvir o novo líder da oposição quanto a este assunto. Também é verdade que, na altura, Luís Montenegro esteve muitíssimo mal na resposta ao apelo de António Costa, dizendo que este reflectia incompetência face a este dossier. É uma tentativa de aproveitamento político bacoco e demagógico, mas ficamos já a saber o que pensa Luís Montenegro sobre dialogar com a oposição. Os que temiam que uma maioria absoluta do PS fosse poder absoluto, não podem agora ficar surpreendidos quando Luís Montenegro superar, caso tenha oportunidade, o legado de Luís XIV.
Como é evidente, um assunto desta envergadura deve ser decidido com uma maioria qualificada e estável, não só devido à duração do projecto, mas também à sua relevância no panorama nacional. Qualquer decisão que se tome terá impacto, seguramente, para o que resta do século. Ainda que prefira uma má decisão a uma não-decisão, este assunto não pode ser decidido levianamente. E, sobretudo, não pode ser pelo ímpeto de um só ministro que se pode tomar um rumo.
É verdade que os governos de António Costa são caracterizados por uma centralização excessiva no Primeiro-Ministro e que nenhuma decisão passa sem o seu aval. Todavia, é impensável que este não tenha sido consultado num assunto desta envergadura. Sabemos que Pedro Nuno Santos é, provavelmente, o único ministro com ímpeto reformista no governo – por comparação com yes men ou múmias ambulantes, como Mariana Vieira da Silva ou Fernando Medina –, mas tal não desculpa uma trapalhada insensata e feita em cima do joelho.
A conferência de imprensa que Pedro Nuno Santos deu ao fim da tarde de quinta-feira, após horas de indefinição, foi dolorosa de se ver. Passamos a conhecer uma faceta sua até agora desconhecida. Ao contrário do habitual tom assertivo e directo, que até se confunde com prepotência, vimos um ministro cabisbaixo, em tom de lamúria, com ar derrotado, a admitir a sua falha (sem nunca dizer a palavra “erro”). Esta conferência foi também uma confirmação da principal tese, na qual o ónus da culpa estaria do lado de Pedro Nuno Santos (se este estivesse inocente, como alguns chegaram a pensar, iria entrar em choque com o Primeiro-Ministro e não pedir desculpa). O que Pedro Nuno Santos fez foi gravíssimo. O Primeiro-Ministro tinha mais que razão para o demitir na hora. Não o terá feito por um qualquer acto de misericórdia?
Pedro Nuno Santos perdeu, graças a esta “brincadeira”, uma parte considerável do apoio que tinha acumulado dentro da máquina do PS, após vários sucessos, como a gestão das relações com a chamada Geringonça. Queimou também pontes a alguma esquerda que não se coaduna com tais procedimentos e atitudes. Não vou tão longe ao dizer que colocou em causa a sua possível liderança do PS quando António Costa sair (provavelmente para o Conselho Europeu em 2024). Contudo, deu margem de manobra a actores de uma linha pró-establishment, como Ana Catarina Mendes, Mariana Vieira da Silva ou Fernando Medina, para que continuem o seu caminho habitual – fazerem-se de mortos em todos os assuntos, não levantar ondas e esperar que o apoio da máquina passe do Primeiro-Ministro para um deles por osmose, para deleite do actual PM. Pedro Nuno Santos jogou nas costas de António Costa, contrariou ordens directas, colocou em xeque toda a governação e mostrou verdadeiramente o seu carácter. Considerações ideológicas à parte, são estas as características que queremos para um futuro líder do país?
Se fosse o Primeiro-Ministro não hesitaria um segundo a demitir alguém após semelhante desautorização e traição. Mas António Costa, como experiente e hábil jogador, sabe que Pedro Nuno Santos iria causar mais dano fora do governo que dentro. Talvez tenha seguido a velha máxima de manter os amigos por perto e os adversários internos ainda mais.
O autor não segue o novo acordo ortográfico