Maré alta
Durante mais de meio ano não escrevi, salvo erro, uma única vez sobre inflação. No espaço de escassas semanas, este será o meu terceiro artigo sobre o tema. A inflação teima em não nos deixar e as declarações de Fernando Medina, na apresentação do Orçamento de Estado, fizeram-me repensar o assunto. Questionado sobre aumentos salariais (pelo menos na função pública), Fernando Medina afirmou, com toda a desfaçatez: “Aumentos salariais? Não podemos acrescentar um motor interno à inflação". Vindo de qualquer outra pessoa, tal comentário poderia passar-me ao lado. Vindo do ministro das Finanças, detentor de vários cursos em Economia, não esperava tal lógica errónea dissimulada de argumentação.
A teoria keynesiana, que moldou toda a nossa macroeconomia, diz-nos, grosso modo, que aumentos salariais só resultam em inflação se estes forem superiores ao aumento da produtividade. Ora, no relatório sobre o Orçamento de Estado para este ano, feito pela equipa de Fernando Medina, está previsto um aumento da produtividade real de 3,5%. Ou Fernando Medina esteve francamente pouco atento durante a sua vida académica ou então existe uma outra razão para que negligencie o paradigma económico vigente. O governo poderia aumentar os salários sem risco de uma espiral inflacionária (mesmo um aumento salarial ligeiro implicaria uma diminuição do poder de compra, visto a inflação ser superior a esse valor).
Fernando Medina alega combater a inflação diminuindo o poder de compra dos portugueses, o que resultará numa menor procura. Todavia, o ministro ignora que esta inflação não é provocada por um excesso de procura no mercado nacional, antes por uma falta de oferta significativa em alguns sectores críticos – como o da energia e dos transportes. A procura em Portugal pouco ou nada afectará a inflação, seja positiva ou negativamente. Contudo, esta inflação será muito útil ao governo pois irá arrecadar mais impostos indirectos e diminuir o peso da dívida no PIB (nominalmente).
Alguns adeptos destas políticas mais austeritárias (ou anti-expansionistas) fazem analogias completamente bárbaras, como até dizerem que a inflação é igual às marés, isto é, quando esta sobe ou desce afecta todos por igual. O poder de compra dos portugueses irá diminuir e nem todos vão sofrer da mesma forma. Aliás, esta lógica falsa e manifestamente perigosa, de que estamos todos no mesmo barco, também foi várias vezes proferida durante os piores tempos da pandemia.
Sem entrar em particularidades técnicas, analisemos dois indicadores simples – rendimentos e propriedade – para entender quem mais perde com a inflação. Os dados das seguintes figuras referem-se à França, ao ano de 2015, mas nada indica que não possam ser extrapolados para a realidade portuguesa e para o presente ano.

Distribuição dos rendimentos por faixa da população
A figura anterior mostra que a esmagadora maioria da população (cerca de 90%) possui como principal fonte de rendimento salários e pensões. Assim, tanto a classe mais desfavorecida como a classe média vêem os seus rendimentos significativamente afectados pela inflação, o que resulta em perdas claras de poder de compra. Já os 10% mais ricos da sociedade possuem como principal fonte de rendimento dividendos financeiros, como juros e acções, que respondem à inflação e são menos afectados por esta.
A seguinte figura mostra que esta concordância entre classe pobre e classe média não se verifica quando a discussão é sobre património e não sobre rendimento.

Distribuição da propriedade por faixa da população
Como é possível verificar, os 40% mais pobres da sociedade possuem, essencialmente, como reserva de valor (património), depósitos. Sendo os mais pobres da sociedade, não será muito difícil imaginar que são apenas alguns milhares de euros em contas bancárias, ou seja, liquidez (tal como o seu salário). Os 40-50% seguintes, que designamos por classe média, possuem, sobretudo, como património/propriedade a posse de imóveis. Muito provavelmente será a posse da própria casa. Já as classes mais altas, situadas nos 10% mais ricos da população, a sua reserva de valor é significativamente distinta. Possuem pouquíssima liquidez e a maioria do seu património encontra-se em activos financeiros, como acções ou obrigações.
Assim, enquanto a classe média e as classes mais altas possuem uma reserva de valor que não é significativamente afectada pela inflação, os mais pobres são duplamente prejudicados por esta – tanto nos seus rendimentos como na sua reserva de valor. Isto diz-nos que a classe média, mesmo perdendo um poder de compra significativo, possui uma reserva de valor relativamente robusta e poderá aguentar uma perda temporária do poder de compra. Já as classes mais baixas, compostas por cerca de 50% da população, não conseguem vislumbrar algo positivo vindo da inflação.
Como vimos, não é verdade que estejamos todos no mesmo barco pois a inflação afecta sobretudo os mais pobres, cujo rendimento e património é quase exclusivamente detido em liquidez.
Termino com uma analogia mais correcta para explicar a inflação. Vamos assumir que a maré é o custo de vida. Quando a maré sobe, sobe para todos, mas não nos afecta da mesma forma. Enquanto uns poucos estão no seu iate a desfrutar de um drink de fim de tarde, alguns aguentam-se num bote de borracha e a esmagadora maioria de nós está agarrada a um tronco de madeira. Uns continuam como se nada fosse, outros apertam o cinto e a grande maioria afoga-se. Aparentemente, com Fernando Medina ao leme, o governo não irá atirar nenhum salva-vidas para os mais pobres.
O autor não segue o novo acordo ortográfico