Mercados liberais


Por forma a reduzir o impacto da subida dos preços dos combustíveis, o governo anunciou, há algumas semanas, a intenção de reduzir substancialmente a carga fiscal sobre estes produtos. Tendo de esperar por autorização europeia para diminuir o IVA de 23% para 13%, decidiu baixar o Imposto Sobre Produtos Petrolíferos (ISP) na mesma proporção. A aplicação da lei começou na passada segunda-feira. Contudo, a descida anunciada não se reflectiu totalmente na factura que pagamos.

Todos os que esperavam que o preço baixasse na exacta medida da redução dos impostos foram surpreendidos pelo efeito de uma mão invisível poderosa: as descidas dos preços dos combustíveis ficaram bastante aquém do que poderiam ser. Se foi surpreendente para uns, não foi, de todo, para outros, principalmente para aqueles que conhecem o funcionamento dos mercados reais e já antecipavam este desenlace.

O mercado dos combustíveis possui uma procura fortemente inelástica (a procura por combustíveis mantêm-se muito constante, independentemente do preço praticado). A isto, acrescenta-se que, em Portugal, o mercado é extremamente rígido, com um poder negocial absurdo por parte das empresas que comercializam os combustíveis. Junta-se o útil ao agradável para que não exista verdadeira concorrência no mercado, resultando em preços absolutamente incomportáveis para o comum dos mortais. As gasolineiras, perante uma descida acentuada dos impostos, decidiram embolsar uma fatia considerável da descida ao invés de a passar totalmente para o mercado.

Carrinho sobre carris

Método de deslocação a carris, no séc. XIX, quando ainda não havia motores a combustão interna.

Fonte: Thib Phill, CC BY 4.0, via Wikimedia Commons

A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) escreveu um comunicado no dia 4 de Maio, onde afirmou, após inúmeros detalhes e explicações técnicas: “Não existem evidências que permitam suportar que a redução do ISP não tenha sido repercutida nos consumidores.". Para além de não ser preciso tal explicação complexa para chegar a esta conclusão, a ERSE passou ao lado do ponto principal – as descidas (que ocorreram) ficaram muito aquém do expectável. Tal como o primeiro-ministro referiu (e bem), os impostos são apenas uma das componentes do preço. É preciso ter em conta outros factores que ocorreram em paralelo com a descida dos impostos, como o prolongamento da guerra na Ucrânia, que desestabiliza mercados, ou a depreciação do euro face ao dólar. Estas questões não podem ser olvidadas ou deixadas de lado. Contudo, torna-se premente questionar o aumento pornográfico dos lucros da GALP (na ordem dos 500%) e de outras empresas petrolíferas, “cujo resultado cresceu à boleia do aumento dos preços do petróleo”, e perceber se não existe aproveitamento destas por uma descida dos impostos.

Como se prevê que os problemas supra-referidos se mantenham, urge pensar noutras medidas que efectivamente regulem o preço dos combustíveis em Portugal. O primeiro-ministro coloca em cima da mesa outras medidas mais interessantes, como a fixação temporária de margens de lucro, que poderá ser particularmente útil para regular um mercado que se encontra praticamente em situação de oligopólio.

Não estou em crer que, mesmo numa situação sem guerra ou outras condicionantes, o preço diminuísse na mesma medida. Não é pessimismo ou preconceito ideológico – é por saber como funcionam os mercados reais, onde uma desculpa irá sempre surgir. Se os agentes económicos agem assim, após um desapertar do cinto, então só podemos imaginar como seria num mercado completamente liberalizado e sem interferência, como muitos defendem. O mais curioso destes, que defendem um mercado nestes moldes e que tanto advogam a liberdade, é que não permitem qualquer tipo de heterodoxia, acusando qualquer opinião contrária de populismo ou até de estupidez. Para estes, que são defensores últimos da liberdade, só existe uma verdade absoluta e encontra-se escrita em qualquer livro de Milton Friedman ou Hayek. Para quem tanto critica o pensamento ortodoxo das bancadas mais à esquerda, é um telhado de vidro gritante.

Num dos maiores clássicos da literatura italiana, “O leopardo” de Di Lampedusa, o sobrinho do príncipe de Salina, aquando da reunificação italiana dizia que o tio deveria renunciar a todos os poderes instalados e entregar-se, de coração e alma, ao novo poder revolucionário. Vendo que o tio ficou reticente, complementou com “Tudo terá de mudar para que tudo fique igual”. Se deixarmos o mercado actuar como até então, garanto-vos que por mais que mudemos os impostos, tudo vai ficar igual.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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