Viva Macron
A primeira volta das eleições francesas decorreu no passado dia 10 de Abril. Enquanto esperamos o duelo da segunda volta, que acontecerá no dia 24 e terá um impacto profundo no panorama político europeu, importa interpretar os resultados desta primeira votação e retirar as devidas ilações.

Os resultados eleitorais na primeira volta das Eleições Presidenciais francesas de 2022, comparados com os de 2017
A primeira volta ficou marcada pelo quase completo desaparecimento dos partidos tradicionalmente mais fortes da política francesa: o PS (Parti Socialiste), de Mitterrand e Hollande e o LR (Les Républicains), de Sarkozy, herdeiros de De Gaulle, Pompidou e Chirac. Em 2017, ambos os partidos tinham já tido resultados surpreendentemente negativos. Nenhum chegou à segunda volta e o PS não conseguiu mais do que 6,36%. No entanto, desta vez, a sua situação agravou-se muito mais do que seria expectável. Os Republicanos perderam quase 16% de votação e os Socialistas não chegaram sequer aos 2%. Somados, não atingem agora os 7%, um resultado vergonhoso para os antigos maiores partidos “do sistema”.
O PS continua a mostrar que não ultrapassou o “fator Hollande”. François Hollande foi o presidente menos popular da 5.ª República Francesa. Demonstrou apenas incompetência, quebrando as suas principais promessas eleitorais e deixando os eleitores de esquerda com um sentimento de traição pelo candidato em que tinham apostado. A sua presidência abalou o partido e deixou os Socialistas numa posição frágil para as eleições de 2017. O último golpe ao partido nessas eleições viria com a candidatura de Macron, ministro da Economia de Hollande, que captou os votos com que o partido contaria. Porém, seria de esperar que, passados 5 anos de uma presidência de Macron que desiludiu muitos eleitores do PS, a memória coletiva de Hollande começasse a ter menos peso e o partido conseguisse recuperar pelo menos parte dos seus votantes. Tal não aconteceu, muito pelo contrário. Decerto, não terá ajudado a escolha de Anne Hidalgo, presidente da Câmara de Paris. É uma figura pouco carismática, que muitos franceses associam à capital e, como tal, desligada do restante país e não muito diferente de Macron. Além disso, é alguém que já tinha desgastado a sua posição perante os parisienses, como evidenciado pelo facto de ter recebido menos de 23 mil votos na cidade a que preside.
Por sua vez, os Republicanos entraram em queda livre, com uma votação muito abaixo da esperada. Em 2017, haviam falhado por pouco a segunda volta das eleições e a responsabilidade desse falhanço podia ser inteiramente atribuída a François Fillon. O então candidato viu-se envolvido numa polémica e acusado de corrupção, perdendo assim uma grande fatia dos seus votos para Macron. Contudo, é 5 anos depois e com nova candidata, Valérie Pécresse, que o partido tem a pior prestação eleitoral da sua história (e da história dos partidos que o antecederam). Pécresse preside o conselho regional da Ilha de França, maior região do país. No entanto, à semelhança de Hidalgo, nem na região a que preside obteve a votação que desejava. Algures entre o agora comprovadamente liberal Macron e a ultraconservadora Le Pen, Pécresse foi incapaz de aglomerar os votos da direita e não conseguiu mesmo chegar aos 5% de que necessitaria para obter o reembolso das suas despesas de campanha – o que já a levou a pedir o apoio financeiro daqueles que votaram nela.

Os partidos com maior tradição em França sangraram votos e estão em risco de desaparecer
No sentido oposto, alguns dos partidos anti-sistema continuam a crescer, continuando a tendência de 2017. Juntos, já levam quase 58% dos votos, conseguindo uma forte maioria dos eleitores. Mas que fatores contribuem para esta radicalização na política francesa? Poderíamos olhar para o descontentamento generalizado no país como justificação. Certamente tem um papel importante: muitos são os que acusam Macron de ter sido um “presidente dos ricos” e várias das suas medidas mais impopulares levaram a protestos generalizados, como os do movimento dos “coletes amarelos”. Mas não foram só Le Pen e Mélenchon que cresceram nestas eleições: Macron melhorou significativamente o seu resultado à primeira volta, comparando com 2017 – foi, aliás, aquele que mais aumentou a sua votação. Deverá haver outro fator, além do tão importante descontentamento, que contribua para esta conjugação específica de resultados.
Falemos, então, de voto útil. Não é nada de novo: é inerente aos nossos métodos de votação e estamos acostumados a falar dele em Portugal – foi até muito relevante nas legislativas mais recentes. No entanto, por cá, costumamos associar o voto útil à transferência de votos dos extremos para os dois maiores partidos do centro. Em França, observámos um fenómeno diferente, um voto útil “ao contrário”, para os extremos. Perante a sempre presente “ameaça Le Pen” e um Emmanuel Macron que os desiludiu e mostrou ser mais liberal do que pensavam, os eleitores da esquerda francesa abandonaram quase por completo os mais moderados Socialistas e Verdes para votar em Mélenchon, o único candidato de esquerda que dava sinais de poder chegar à segunda volta. Do outro lado, o medo causado pelo crescimento de Mélenchon terá também contribuído para a transferência de votos para Marine Le Pen, dos Republicanos mais conservadores e dos apoiantes de Dupont-Aignan (assim como de alguns eleitores de Zemmour, ainda mais radical), de forma a assegurar nova passagem desta candidata à segunda volta. Ao centro, o voto útil também explica o crescimento de Macron: confrontados com a possibilidade cada vez mais provável de uma segunda volta entre os radicais Mélenchon e Le Pen, os eleitores moderados dos Socialistas e dos Republicanos preferiram votar no atual presidente, de forma a terem pelo menos uma opção centrista na segunda volta das eleições.

Os partidos franceses abertamente anti-sistema totalizam agora quase 58% dos votos
Chegamos assim a um país tripartido – uma distribuição relativamente rara de forças políticas – e a um cenário de forte polarização. Na extrema-direita, Marine Le Pen continua a consolidar uma votação muito significativa e que, infelizmente, se tem tornado habitual. Além disso, surge Éric Zemmour (que consegue ser ainda mais extremista) como o 4.º candidato mais votado, na primeira candidatura do partido que formou. Do lado oposto, Jean-Luc Mélenchon que, apesar de ter vindo a moderar algumas posições e de ter conseguido atrair o apoio de vários ecossocialistas e sociais-democratas, continua a ser bastante mais radical do que os tradicionais políticos da esquerda francesa. Entre eles, visto pelos moderados como “mal menor”, alternativa à polarização e única hipótese de proteger o sistema democrático, posiciona-se o presidente Macron.
Esta configuração torna mais difícil fazer previsões para a segunda volta das eleições. Por um lado, podemos ver que a diferença entre Macron e Le Pen é maior agora do que foi, na mesma fase, em 2017 – poderíamos pensar que o atual presidente tinha a reeleição quase garantida. Por outro lado, sabemos que muitos dos votos que Macron conquistou na segunda volta de 2017 terão vindo de Republicanos e Socialistas, partidos que agora desapareceram e cujos votos, por si só, não deverão chegar para que Macron continue no Palácio do Eliseu. Tornam-se particularmente decisivos os votos que, na primeira volta, foram confiados a Mélenchon, sem os quais nenhum dos candidatos restantes consegue ganhar. Para percebermos em quem vai votar a maioria destes eleitores, falta descobrirmos se foram principalmente movidos por um voto na esquerda (Macron é a opção mais próxima no espectro) ou por um voto de protesto (Le Pen espelha melhor o descontentamento da população com a situação do país). A segunda opção pode vir a ter mais peso na eleição do que o esperado, dado que os dois extremos têm alguns pontos comuns: o nacionalismo e o euroceticismo, construídos sobre uma base populista. Aliás, em 2017, Mélenchon (assim como Arthaud e Poutou) recusou-se a escolher um lado na segunda volta. Desta vez, porém, a situação está ligeiramente mais favorável para Macron: Mélenchon pediu expressamente aos seus eleitores que não dessem um único voto a Le Pen, ainda que sem mencionar o nome do atual presidente.

Emmanuel Macron e Marine Le Pen disputarão a segunda volta das eleições presidenciais em França
Fontes: Jacques Paquier, CC BY 2.0; Duma.gov.ru, CC BY 4.0; via Wikimedia Commons
Há, de facto, boas razões para crer que o voto em Le Pen é perigoso. A candidata destacou-se dos demais pela sua retórica nacionalista e protecionista. Tornou-se a voz da xenofobia e, em particular, da islamofobia, dos franceses que querem que seja posto um travão à entrada de imigrantes e refugiados, por acreditarem que estes põem em causa a sua forma de vida e a sua cultura. Com base neste e noutros engodos, transformou-se também numa das maiores faces do anti-europeísmo em todo o continente, atacando fortemente o projeto europeu. Depois do fiasco Brexit e do aparecimento de um candidato ainda mais radical, Zemmour, viu-se obrigada a moderar este discurso para um euroceticismo menos radical. Ainda assim, a sua eleição representaria certamente uma volta de 180º da posição que a França de Macron tem assumido na Europa, uma postura de maior aproximação e integração.
Além de tudo isto, Le Pen traz consigo outro perigo ainda maior e agora mais relevante do que nunca: a devoção a Vladimir Putin. À semelhança de outras figuras da mesma área política, Le Pen idolatra a imagem que Putin construiu para si próprio: um “líder forte”, sem medo de fazer o necessário para “glorificar a pátria”, pouco distraído com banalidades como oposição ou processos democráticos. Por outras palavras, um tirano. Por isso, foi-se encontrando com Putin “regularmente”, segundo o próprio, e recebeu financiamento russo durante anos. Talvez tenha sido esse financiamento que a levou a defender uma aproximação à Rússia, em plena invasão da Ucrânia. Que não haja qualquer espaço para dúvidas: figuras como Le Pen são fulcrais para os planos de Putin. Semeiam a discórdia na Europa e, se muitas forem vitoriosas, trarão o fim do projeto europeu, um travão ao imperialismo russo desde a Guerra Fria.
Contudo, não é razoável esperarmos que os franceses votem em Macron pura e simplesmente para impedir Le Pen de chegar ao poder. Ser um “mal menor” não é uma condição que motiva profundamente eleitores de outras áreas do espectro político, o que pode vir a prejudicar o atual presidente na segunda volta. Importa, portanto, fazer uma defesa de Macron e perceber os pontos positivos da sua presidência, até aqui. Uma das medidas mais marcantes de Macron a nível doméstico foi a reforma das leis laborais: marcadamente liberal, encostou-o definitivamente ao centro-direita e desiludiu os eleitores de centro-esquerda que o apoiaram. No entanto, na prática, contribuiu para alguns dados positivos: quase de imediato, os franceses observaram a maior queda da taxa de desemprego desde 2001 e, no seguimento da pandemia de COVID-19, o país conseguiu uma recuperação económica relativamente rápida. A gestão da pandemia por Macron foi, aliás, outro ponto positivo da sua presidência, um que o viu recuperar algum fôlego nas taxas de aprovação. O programa de vacinação arrancou de forma lenta, mas a posição rígida do governo na imposição de restrições a não vacinados acabou por resultar numa percentagem da população vacinada consideravelmente superior à média europeia.
Foi, no entanto, no plano internacional que Macron mais deixou a sua marca. Em particular, na posição da França dentro da União Europeia. A visão de Macron para a Europa passou sempre por maior integração. Durante a sua presidência, aqueles que partilham desta visão puderam aproximar-se de um dos países mais influentes da UE, reforçando o estatuto da França como peça central do projeto europeu. Especialmente desde a saída de cena de Angela Merkel, Macron tem tentado posicionar-se como um líder da União Europeia, e tornou-se, provavelmente, no governante europeu com maior visibilidade atualmente.
Tal como em 2017, à segunda volta das presidenciais, os franceses têm pela frente dois caminhos extremamente diferentes. De um lado, mais Europa, mais democracia, mais progresso. Do outro, nacionalismo, autoritarismo, ódio. Resta-nos esperar que façam a escolha certa – uma que, certamente, nos afetará a todos. Gostemos mais ou menos do que representa Emmanuel Macron, devíamos estar todos a ansiar a sua vitória.