Não acabou em berbicacho mas talvez venha o diabo


Marcelo Rebelo de Sousa, ao dissolver a Assembleia da República, pediu aos portugueses que votassem em consciência, para que desse processo não saísse nenhum "berbicacho". Marcelo teve o que pediu. O PS conseguiu secar os partidos à sua esquerda e, se a vitória era o cenário mais provável, assegurar a maioria absoluta foi um choque para uma grande franja da população. Só não se qualifica como hecatombe porque a estabilidade, para o bem e para o mal, está salvaguardada durante quatro anos.

O PS canibalizou os partidos à sua esquerda e os portugueses desse quadrante não hesitaram em transferir o seu voto, essencialmente por dois motivos:

1. Penalização pelo chumbo do Orçamento de Estado (OE) na generalidade. A intransigência dos partidos de esquerda por nem tentar conseguir um orçamento melhor na especialidade apenas mostrou radicalismo. O OE que poderia resultar desta negociação seria bastante melhor que o chumbado na generalidade mas parece que o partidarismo falou mais alto.

2. A procura de estabilidade em tempos incertos. Ainda que alguns dos problemas do momento se venham a solucionar no curto-médio prazo (fim das restrições da pandemia, inflação voltar a níveis moderados, taxas de juro estabilizarem após a subida), a aglutinação do voto útil no PS é uma clara procura de estabilidade e uma forma de manter o governo durante a legislatura completa. Foi também uma forma de combater algum radicalismo de modo a evitar dissabores como o que tivemos, caso apenas resultasse daqui um acordo de incidência parlamentar.

Apesar destes dois principais pontos, outros motivos se levantam, como a questão da marcação da agenda ou a mobilização. À esquerda, quem marcou a agenda foi o PS e, também por isso, agregou votos do PCP e do BE, que obtêm resultados desastrosos e cujas lideranças não podem passar incólumes. Já à direita, o PSD nunca marcou agenda. Discutiu sempre as propostas de outros, nomeadamente CHEGA e IL que, com um palco maior do que já tinham, projectaram-se para a frente. Esta questão, aliada a uma campanha pouco mobilizadora do PSD (cujos debates tiveram um papel importante para mostrar isso), ajuda a explicar a enorme discrepância entre os dois maiores partidos portugueses.

Um aspecto positivo sai destas eleições: a diminuição da abstenção. Esta fixou-se nos 42,1%, um valor inferior comparando com as eleições de 2019 (45,5%). Votaram aproximadamente mais 300 mil eleitores. Mesmo com uma pandemia, a mobilização foi enorme e foi um factor determinante para a conquista da maioria absoluta, que foi a maior surpresa da noite.

Quando Costa fez o seu discurso de vitória, para descansar os portugueses, afirmou que “uma maioria absoluta não é poder absoluto, não é governar sozinho”. Claro que é apenas um truque de retórica, porque é essa a verdadeira definição de maioria absoluta. É governar dentro dos parâmetros constitucionais, com a atenção devida do Presidente da República, mas sem dar grandes satisfações.

Pode-se fazer uma análise curiosa em relação às maiorias absolutas, a nível europeu. Notamos que estas praticamente já não existem. À excepção de Albânia, Grécia, Malta e Moldávia, todos os restantes países europeus possuem governos de coligação ou com acordo de incidência parlamentar. A este grupo de países, famosos pela sua cultura democrática e brilhante desempenho sócio-económico, temos agora de adicionar Portugal.

Governos de coligação

Países com governo de coligação ou de acordo parlamentar versus países com governo de maioria absoluta. Bielorrúsia, Rússia e Turquia ficam de fora da análise por não se enquadrarem na definição de democracia liberal Fonte: Lista de governos de coligação

O problema com a maioria absoluta não é o regime democrático, pois este está amparado por uma clara separação de poderes e instituições. O regime sobreviveu bem a três maiorias absolutas e em nenhuma delas se colocou em causa a democracia. Esta não funciona só quando o nosso partido ou área ganha, pelo contrário, funciona mesmo quando não estamos do lado vitorioso. Aliás, só se mostra quão madura é uma democracia quando a derrota eleitoral é aceite sem grandes períodos conturbados.

O problema de qualquer maioria absoluta é a arrogância que gera e se traduz na inexistência do confronto de ideias e na típica sensação “quero, posso e mando”. A estes problemas típicos da maioria absoluta temos de juntar o nulo ímpeto reformista do PS. Não se prevê grandes reformas significativas, mudanças estruturais ou uma vontade que Portugal seja um país líder da Europa. Não estão em causa os checks and balances do nosso sistema com esta maioria absoluta, estejam descansados. O que está em causa são quatro anos de inércia sistémica.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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