Os mitos liberais
Na semana passada um post do Instituto +Liberdade gerou bastante controvérsia. Este instituto, um think tank de índole liberal, utilizou a sua página “+Factos” para dar conta que na primeira tranche do PRR 99% das verbas estão alocadas ao Estado ou a empresas estatais. A figura abaixo mostra esse mesmo post.
Post do Instituto +Liberdade. Fonte do post aqui
O post, tal como está, leva a um raciocínio bastante enviesado, tanto mais quanto menos tempo perdermos a pensar nele. Segundo a imagem acima, a primeira tranche do PRR será alocada praticamente na totalidade ao sector público. A conclusão é que o valor para empresas e famílias será extremamente reduzido. Esta leitura superficial, criada pela forma como a informação está no post, contém vários mitos e contradições liberais, que vou passar a esmiuçar.
1º Mito Liberal: O investimento no sector público ficará retido na máquina opressiva do Estado e não irá beneficiar ninguém.
O que se infere do post que o Instituto +Liberdade criou é que o investimento do PRR ficará preso na máquina do Estado. Isto é manifestamente falso e não se verifica na prática. Grande parte do investimento no sector público, tanto para entidades ou empresas públicas, irá posteriormente a concurso e será alocado para empresas privadas. Isto ocorre, por exemplo, em escolas, quando estas adquirem novos computadores ou reestruturam uma fachada. Também o mesmo ocorre em hospitais quando fazem parcerias com clínicas privadas para exames, por exemplo. São apenas dois exemplos simples de que é irreal achar que o investimento será absorvido por um buraco sem fundo que não promove o crescimento. Este raciocínio leva-nos ao segundo mito liberal do post.
2º Mito Liberal: A administração pública não gera riqueza.
Para os liberais, o Estado e a administração pública não geram riqueza. Gostam de viver no dualismo de que sector privado “sustenta” o público, isto é, que uns trabalham e os restantes “vivem à custa dos outros”. Este dualismo tribal e primário é útil para criar uma divisão entre nós e eles e para colocar todas as causas dos problemas de um lado. Infelizmente, esta lógica é manifestamente inútil para tudo o resto pois, para além de ser falsa, em nada ajuda o debate.
Só mesmo estes conseguem conceber a ideia de que a administração pública e o Estado não geram riqueza e que não são um bem maior para toda a população, antes um empecilho na vida de cada um. Por exemplo, a educação e a saúde são pilares essenciais de criação de riqueza que nos vêm imediatamente à cabeça quando pensamos mas não são, de todo, os únicos. Podemos incluir os transportes públicos, nos quais uma grande fatia da população faz as suas deslocações, por exemplo, para o seu emprego. Podemos também pensar nas estradas das quais usufruímos. Também podemos incluir os parques, jardins e instituições culturais, cuja construção, manutenção e subsidiação é pública, dos quais beneficiamos todos. Admito que todos estes exemplos podem ser considerados como potenciadores de riqueza, ou seja, só o fazem de forma indirecta mas também o Estado tem um papel essencial na criação directa de riqueza. Quando investe em inovação e tecnologia, por exemplo, em grandes centros de investigação (fundamental ou aplicada), para além de empregar várias pessoas, cria um motor para o crescimento económico do qual beneficiam directamente as empresas e todo o restante país.
Num parágrafo mostrei uma mão cheia de exemplos de criação de riqueza por parte do Estado. Longe de serem os únicos, são exemplos que mostram a importância de um sector público forte na nossa vida quotidiana. Mas passemos ao último mito, que é também a maior contradição do post.
3º Mito Liberal: O Estado não deve interferir no mercado sob pena de destruir a livre concorrência (mas pode apoiar empresas privadas).
Os verdadeiros liberais crêem que o Estado não deve envolver-se na economia ou, se o fizer, deve ser de forma muito reduzida, para não interferir com os pressupostos da concorrência livre - os princípios do laissez-faire do século XIX. Ao mesmo tempo que acreditam nisto, defendem a intervenção estatal, neste caso com subsídios para as empresas. Caso contrário porque haveriam de fazer tal post a criticar, ainda que indirectamente, a alocação das verbas? É uma adaptação do “Privatizar lucros, socializar perdas”. Parece que afinal o Estado pode e deve interferir na economia e alterar o equilíbrio da livre concorrência mas apenas se for para distribuir dinheiro público para entidades privadas. Não consigo conceber maior contradição que esta.
Estou disposto a admitir que a subvenção directa para empresas, nesta primeira tranche do PRR, é bastante curta. Ainda assim, deixo a seguinte nota para os liberais que apenas viram post do Instituto +Liberdade e não foram à fonte original: somente 212 empresas apresentaram candidatura para receber algum apoio neste primeiro pacote, das quais apenas 18 tiveram a candidatura aprovada. Qual é, então, o objectivo dos liberais? Aparenta ser distribuir dinheiro público sem escrutínio e, se for esse o objectivo final, permitam-me que diga que é um objectivo muito pouco liberal.
Estou mais preocupado, nesta fase inicial do PRR com o facto de ter havido zero candidaturas para “Instituições do sistema científico e tecnológico”. Como já defendi várias vezes neste espaço, se não construirmos um tecido empresarial baseado em inovação tecnológica e investigação não iremos sair da armadilha de salários baixos e de baixa produtividade. Esta fase inicial era crucial para tal pois, como sabemos, estes projectos na área da inovação e tecnologia são demorados e só iremos colher os frutos passado um tempo bastante considerável.
São José Almeida, jornalista do Público, escreveu numa crónica passada: "A IL é um partido que cresceu devido ao eleitorado jovem e qualificado, para quem a prioridade é pagar menos impostos e que está longe de estar preocupado com assuntos como a aposta no Estado-providência (...) questões que naturalmente preocupam o eleitorado com mais idade.". A cronista toca no ponto certo. O eleitorado mais jovem, por ter como dado adquirido o Estado Social do nosso país, esquece-se que o mesmo é sustentado com as nossas contribuições. Olhar apenas para os impostos pagos no recibo de vencimento sem pensar no Estado-Providência que tivemos (e temos) ao nosso dispor é uma falha intelectual muito grave, se for inocente, ou um perigo enorme para a sociedade e para o Estado como o conhecemos, se for propositado. Os mitos e contradições liberais espalhados pela Internet em nada ajudam.
A Iniciativa Liberal é um partido extremamente ideológico mas contraditório. Rege-se por dogmas e formulações com séculos mas inunda-as de pensamento pós-moderno neoliberal que não é coerente e que até vai contra princípios liberais básicos. Além destas incoerências são também extremamente radicais, não na defesa do contribuinte como tanto proclamam, mas na destruição do Estado como o conhecemos.
Os liberais acusam a esquerda mais corporativista de preconceito ideológico contra privados. É preciso serem muito cegos para não terem noção do seu próprio preconceito ideológico contra o Estado.
O autor não segue o novo acordo ortográfico